O HOMEM PRESO QUE OLHA SEU FILHO

(Para reflexão sobre regimes autoritários, tortura e repressão na História da América Latina)

Pelo poeta uruguaio MARIO BENEDETTI

Quando eu era como você me ensinaram meus pais
E também as professoras bondosas e míopes
Que liberdade ou morte era uma redundância.
Quem poderia imaginar num país
Onde os presidentes andavam sem capangas.
Que a pátria ou a tumba era outro pleonasmo
Já que a pátria funcionava bem
Nos estádios e nos pastoreios.
Realmente meu filho eles não sabiam nada
Pobrezinhos acreditavam que liberdade
Era só uma palavra aguda
Que morte era palavra grave
E cárceres por sorte uma palavra esdrúxula.
Esqueciam de por o acento no homem.
A culpa não era exatamente deles
Mas sim de outros mais duros e sinistros.
E estes sim
Como nos espetaram
Na limpa república verbal
Como idealizaram
A vidinha de vacas e estancieiros.
E como nos venderam um exército
Que tomava seu mate nos quartéis.
A gente nem sempre faz o quer
A gente nem sempre pode
Por isso estou aqui
Olhando pra você e sentindo sua falta.
Por isso é que não posso te despentear o cabelo
Nem te ajudar com a tabuada do nove
Nem te golear numa pelada.
Você já sabe que tive que escolher outras brincadeiras
E que brinquei todas elas de verdade.
E brinquei por exemplo de polícia e ladrão
E os ladrões eram policiais.
E brinquei por exemplo de esconde-esconde
E se te descobriam te matavam
E brinquei de pega-pega
E escorria sangue de quem era pego.
Meu filho ainda que tenha poucos anos
Acho que tenho que te dizer a verdade
Para que não a esqueça.
Por isso não te escondo que me deram choques
Que quase me arrebentam os rins.
Todas essas chagas inchaços e feridas
Que seus olhos redondos
Olham hipnotizados
São duríssimos golpes
São botas na cara
Muita dor para que te esconda
Muito suplício para eu apagar.
Mas também é bom que saiba
Que teu pai calou
Ou xingou como um louco
Que é uma linda forma de calar.
Que teu pai esqueceu todos os números
(por isso não poderia te ajudar nas tabuadas)
E portanto todos os telefones.
E as ruas e a cor dos olhos
E os cabelos e as cicatrizes
E em qual esquina
Em que bar
Que parada
Que casa.
E lembrar de você
Da tua carinha
Me ajudava a calar
Uma coisa é morrer de dor
E outra coisa é morrer de vergonha.
Por isso agora
Você pode me perguntar
E mais que tudo
Eu posso responder
A gente nem sempre faz o que quer
Mas tem o direito de não fazer
O que não quer.
Chore apenas meu filho
É mentira
Que os homens não choram
Aqui choramos todos
Gritamos berramos assoamos esperneamos
Porque é melhor chorar que trair
Porque é melhor chorar que se trair.
Chore
Mas não esqueça.



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