A EDUCAÇÃO BASEADA NA FORÇA DA TRADIÇÃO, DA AÇÃO E DO EXEMPLO: A EDUCAÇÃO DOS TUPINAMBÁS À ÉPOCA DO DESCOBRIMENTO

(O que podemos aprender sobre História da Educação no Brasil com os povos indígenas?)

Por FLORESTAN FERNANDES
A sociedade Tupinambá era constituída por coletividades pequenas, unidas por laços de sangue, cujos membros eram indivíduos livres, com direitos iguais, que viviam sobre a base da propriedade comum da terra. A denominação Tupinambá abrangia os vários grupos tupis ocupando uma vasta área que se estendia das regiões meridionais às setentrionais do território descoberto. Tais características nos reportam a um diálogo travado por um velho Tupinambá com Lery:
"Uma vez um velho perguntou-me: por que vindes vós outros, mairs e perôs (franceses e portugueses), buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas. Retrucou o velho imediatamente: e por ventura precisais de muito? - Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau Brasil com que muitos navios voltam carregados. - Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: Mas esse homem tão rico de que me falas não morre? - Sim, disse eu, morre como os outros. Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morre para quem fica o que deixa? - Para os filhos se os têm, respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. - Na verdade continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós mairs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados".
Obviamente que, havendo populações no território descoberto pelos portugueses, que viviam conforme uma determinada forma de organização social, a educação também se fazia presente nessas sociedades. A formação das novas gerações incidia mais diretamente sobre os: (a) Kunumy-miry, crianças do sexo masculino até 7-8 anos e Kugnatin-miry, meninas até 7 anos; (b) Kunumy, meninos dos 8 aos 15 anos e Kugnatin, meninas dos 7 aos 15 anos; e (c) Kunumy-uaçu, rapazes dos 15 aos 25 anos e Kugnammuçu, moças dos 15 aos 25 anos. Todavia, o processo educativo abrangia também os grupos Aua (homens dos 25 aos 40 anos), Kugnam (mulher dos 25 aos 40 anos), Thuyuae (homens de 40 anos em diante) e Uainuy (mulher de 40 anos em diante), estendendo-se por toda a vida.
Até os 7-8 anos de idade, tanto os meninos como as meninas dependiam estritamente da mãe. Os meninos não podiam, ainda, acompanhar os pais; mas recebiam deles arcos e flechas e formavam, com outras crianças da mesma idade, grupos infantis nos quais, informalmente, se adestravam no uso do arco e flecha, além de muitos outros tipos de folguedos e jogos, entre os quais se destacava a imitação dos pássaros. As meninas dessa mesma idade também residiam com a mãe e, assim como os meninos, formavam grupos da mesma idade, adestrando-se nos jogos infantis em tarefas como a fiação de algodão e amassando barro no fabrico de utensílios de cerâmica como potes e panelas.
Na fase entre 7 e 15 anos, os meninos já não ficavam em casa, deixavam de depender da mãe e passavam a acompanhar o pai, que se torna seu modelo e com o qual se prepara para a vida de adulto tomando parte em seu trabalho. As meninas passam a depender mais estreitamente da mãe, sua mestra e modelo, com quem aprendem a semear e plantar, a fiar e tecer, a fazer farinhas e bebidas, cozinhar e preparar alimentos.
A faixa de idade seguinte, dos 15 aos 25 anos, era a fase de participação mais ativa nas atividades dos adultos, incluídas as cerimônias de iniciação, após as quais as jovens podiam entreter aventuras amorosas e contrair matrimônio. Em todo caso, parece que o casamento só era possível após certo tempo: quando os cabelos tivessem crescido pelo menos até as espáduas. Tanto os rapazes como as moças se envolviam diretamente nas atividades laborais, conforme a divisão de sexo: os rapazes participando ativamente nas expedições guerreiras, na caça, na pesca, na fabricação de flechas e prestando serviços nas reuniões dos velhos; as moças, auxiliando as famílias nas atividades femininas e assimilando, de forma prática, as vivências e os papéis femininos.
Entre os 25 e 40 anos, os homens passavam a participar plenamente na vida dos adultos, sendo admitidos nos bandos guerreiros. A participação nas reuniões com os velhos dava-lhes acesso à memória da sociedade Tupinambá, assimilando novos conhecimentos sobre suas tradições e instituições. As mulheres desse mesmo grupo de idade (25 a 40 anos) também assumiam plenamente a condição de adultas, ocupando-se nas numerosas e cansativas tarefas domésticas e cuidando diretamente da educação dos filhos, podendo, também, participar de várias cerimônias em conjunto com os homens.
A partir dos 40 anos, os homens entravam na fase mais bela, podendo tornar-se chefes e líderes guerreiros e chegar à condição de pajés. Nas "casas grandes" cabia-lhes fazer preleções, transmitindo as tradições e orientando os mais jovens, para os quais sua conduta tinha caráter exemplar. Eram admirados e respeitados por todos os membros da tribo. As mulheres nessa faixa a partir dos 40 anos também assumiam papel de destaque presidindo o conjunto dos trabalhos domésticos, carpindo os mortos e exercendo a função de mestras para a iniciação das moças na vida feminina.
Havia igualdade de participação na vida da sociedade por parte de todos os seus membros, não havendo outras formas de diferenciação senão aquela decorrente da divisão sexual do trabalho. Os conhecimentos e as técnicas sociais eram acessíveis a todos, não se notando qualquer forma de monopólio. A cultura transmitia-se por processos diretos, oralmente, por meio de contatos primários no interior da vida cotidiana. E isso não apenas nas relações entre os adultos e as crianças e jovens. Em qualquer idade e tipo de relação social era possível aprender, convertendo a todos, de algum modo, à posição de mestres. Mas ocupavam posição de destaque no processo educativo as preleções dos "principais", isto é, daqueles que tinham atingido a idade da experiência, os maiores de 40 anos, que, por isso, se encontravam nos postos-chave na vida social (os chefes dos grupos locais), na vida militar (líderes guerreiros) e na vida religiosa ou esfera sagrada (pajés e pajé-açu). Suas exortações cumpriam o papel de atualizar a memória coletiva, preservando e avivando as tradições tribais.
Não havia instituições específicas organizadas tendo em vista atingir os fins da educação. Por isso a educação era espontânea. E cada integrante da tribo assimilava tudo o que era possível assimilar, o que configurava uma educação integral. Havia uma educação em ato, que se apoiava sobre três elementos básicos: a força da tradição, constituída como um saber puro orientador das ações e decisões dos homens; a força da ação, que configurava a educação como um verdadeiro aprender fazendo; e a força do exemplo, pelo qual cada indivíduo adulto e, particularmente, os velhos ficavam imbuídos da necessidade de considerar suas ações como modelares, expressando em seus comportamentos e palavras o conteúdo da tradição tribal.
Referência:
FERNANDES, Florestan. A organização social dos Tupinambá. São Paulo; Brasília: Hucitec; Editora da UnB, 1989.



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