RABELAIS E A EDUCAÇÃO RENASCENTISTA: "CIÊNCIA SEM CONSCIÊNCIA É A RUÍNA DA ALMA"
A produção intelectual do Renascimento, seja na literatura ou filosofia, demonstra o interesse em superar as contradições entre o pensamento religioso medieval e o anseio de secularização da burguesia. No contexto de crítica à tradição escolástica, também a educação procura bases naturais, não-religiosas, a fim de se tornar instrumento pedagógico adequado para a difusão dos valores burgueses. Nem sempre alcançado nas escolas, esse ideal é defendido com vigor na obra de literatos, filósofos e pedagogos. Embora seja grande a produção intelectual na Renascença, ainda não há propriamente uma filosofia da educação como sistema de pensamento coerente e organizado. O que há são muitos esboços de teoria da educação, fragmentos de reflexão pedagógica como parte de uma produção filosófica mais ampla.
François Rabelais (1494-1553), frade beneditino e médico francês, representa a corrente enciclopédica da Renascença que busca resgatar o saber greco-latino, com igual cuidado pelos estudos da ciência. Como os demais humanistas de seu tempo, critica a tradição escolástica, mas o faz de maneira irônica, mostrando suas tendências epicuristas, isto é, de valorização dos prazeres da vida.
Rabelais não escreveu uma obra propriamente pedagógica, mas nos romances satíricos "Gargantua" e "Pantagruel" transparecerem suas ideias a respeito da educação. Trata-se de uma utopia em que tudo é exagerado, a começar pelos próprios personagens, que são gigantes. Ao iniciar sua educação, o preceptor de Gargantua deu-lhe de beber o líquido de uma planta chamada heléboro para que esquecesse de tudo o quanto havia aprendido com os seus antigos preceptores. Nessa passagem, Rabelais quer simbolizar a necessidade de expurgar toda lembrança da tradição para melhor ser aproveitado o novo ensino. No texto a seguir, Gargantua escreve ao filho Pantagruel sobre as expectativas quanto à sua formação:
" [...] meu filho, exorto-o a empregar sua juventude no progresso dos estudos e da virtude. Você está em Paris, com seu preceptor Epistemon; este, por orientações práticas e verbais, e aquela, por louváveis exemplos, podem-no instruir. Entendo e quero que aprenda perfeitamente as línguas, primeiramente a grega, como quer Quintiliano; secundariamente, a latina; depois a hebraica por causa das santas epístolas; a caldaica e arábica pela mesma razão; que forme seu estilo, quanto à grega, à imitação de Platão; quanto à latina, à maneira de Cícero; que não haja história que não tenha presente na memória a qual o ajudará a geografia de tudo quanto se tem escrito.
Das artes liberais, Geometria, Aritmética e Música, dei-lhe algum gosto quando ainda pequeno, entre cinco e seis anos de idade; continue o resto, e da Astronomia saiba todas as regras. Deixe a Astrologia divina e a arte de Lúlio (referência à obra 'Grande Arte', de Raimundo Lúlio - século XIII - , na qual o filósofo tinha a intenção de propor uma lógica que superasse a aristotélica) como abuso e vaidade. Do Direito Civil quero que saiba de cor os belos textos e compare-os com a Filosofia.
Quanto ao conhecimento dos fatos da natureza, quero que se adorne cuidadosamente deles; que não haja mar, ribeiro ou fonte dos quais não conheça os peixes; todos os pássaros do ar, todas as árvores, arbustos e frutos das florestas, todas as ervas da terra, todos os metais escondidos no ventre dos abismos, as pedrarias do Oriente e do Sul, nada lhe seja desconhecido.
Depois, cuidadosamente, estude sem cessar os livros dos médicos gregos, árabes e latinos, sem condenar talmudistas e cabalistas; e, por frequentes estudos de Anatomia, adquira perfeito conhecimento do outro mundo que é o homem. E, durante algumas horas do dia, entre em contato com as santas epístolas, primeiramente em grego o 'Novo Testamento' e a 'Epístola dos Apóstolos', depois em hebreu o 'Velho Testamento'. Em suma, que eu veja um abismo de ciência, porque doravante, transformando-se em homem adulto, você terá que sair desta tranquilidade e pasmaceira de estudo e aprender a cavalaria e as armas para defender minha casa e socorrer nossos amigos em todos os negócios contra assaltos dos malfeitores. E quero que, brevemente, você experimente quanto lucrou; e tal poderá ser feito defendendo teses de seu saber, frequentando as pessoas letradas que estão em Paris e outros lugares.
Mas, porque segundo o próprio Salomão, sabedoria não entra absolutamente em alma malévola, e ciência sem consciência não é senão a ruína da alma, convém servir, amar e crer em Deus e n'Ele colocar seus pensamentos e suas esperanças, e pela fé, formada de caridade, estar a Ele associado, de sorte que jamais seja desamparado pelo pecado. Tenha por suspeitos os abusos do mundo. Não coloque seu coração na vaidade, porque esta vida é transitória, mas a palavra de Deus permanece eternamente. Seja útil ao seu próximo e ame-o como se fosse você mesmo. Reverencie seus preceptores; fuja das pessoas às quais você não pode parecer e não receba em vão as graças que Deus lhe deu. E quando perceber que conhece todo o saber aí ensinado, retorne para mim a fim de que o veja e dê-lhe minha bênção antes de morrer.
Meu filho, a paz e graça de Nosso Senhor esteja com você, amém. Utopia, 17.º dia do mês de março. Seu pai, Gargantua".
Referências:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1996.
RABELAIS, François. Pantagruel. In: ROSA, Maria da Glória de. A História da Educação através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2004.
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