ARQUIPÉLAGO GULAG*: A HISTÓRIA POUCO CONHECIDA DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO E TRABALHOS FORÇADOS NO REGIME TOTALITÁRIO DE JOSEF STALIN NA UNIÃO SOVIÉTICA
(Reflexão: Por que devemos sempre apoiar a democracia e lutar contra qualquer regime autoritário/totalitário indiferentemente de sua tendência política?)
(1) Quem foi Aleksandr Soljenítsyn, autor de "Arquipélago Gulag"?
Aleksandr Soljenítsin estudou Matemática na Universidade Estatal de Rostov, ao mesmo tempo cursando por correspondência o Instituto de Filosofia, Literatura e História de Moscou. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), participou de ações importantes como comandante de uma companhia de artilharia do Exército Soviético, obtendo a patente de capitão e sendo condecorado em duas ocasiões. Uma série de textos publicados no final de sua vida, incluindo o inacabado romance "Ama a Revolução!" narra sua experiência de guerra e suas dúvidas crescentes sobre os fundamentos morais do regime soviético.
Algumas semanas antes do fim do conflito mundial, já havendo alcançado território alemão na Prússia Oriental, Aleksandr Soljenítsin foi preso por agentes da polícia do regime stalinista por fazer alusões críticas a Stalin em correspondência a um amigo. Ele foi acusado de propaganda anti-soviética sob o artigo 58 parágrafo 10 do Código Penal. Foi condenado a oito anos num campo de trabalhos forçados, a serem seguidos por exílio interno em perpetuidade.
A primeira parte da pena de Soljenítsin foi cumprida em vários campos de trabalhos forçados. A "fase intermediária", como ele viria a referir-se a esta época, passou-a em uma sharashka, um instituto de pesquisas onde os cientistas e outros colaboradores eram prisioneiros. Dessas experiências surgiria o livro "O Primeiro Círculo", publicado no exterior em 1968. Em 1950, foi enviado a um "campo especial" para prisioneiros políticos em Ekibastuz, Cazaquistão onde trabalharia como pedreiro, mineiro e metalúrgico. Esta época inspiraria o livro "Um Dia na Vida de Ivan Denisovich". Neste campo retiraram-lhe um tumor, mas seu cancro não chegou a ser diagnosticado.
A partir de março de 1953, o escritor iniciou a pena de exílio perpétuo em Kol-Terek, no sul do Cazaquistão. O seu cancro, ainda não detectado, continuou a espalhar-se e, no fim desse ano, Soljenítsin encontrava-se próximo à morte. Porém, em 1954, finalmente recebeu tratamento adequado em Tashkent, Uzbequistão, e curou-se. Estes eventos formaram a base de O Pavilhão dos Cancerosos. Foi durante esta década de prisão e exílio que Soljenítsin abandonou o marxismo e desenvolveu as posições filosóficas e religiosas de sua vida posterior, gradualmente se tornando um cristão, como resultado de sua experiência na prisão e nos campos.
Durante os seus anos de exílio e após sua libertação e retorno à Rússia em 1994, Soljenítsin, enquanto leccionava em escolas secundárias durante o dia, passava as noites escrevendo em segredo. Mais tarde, na breve autobiografia que escreveria ao receber o Nobel de Literatura, relataria que "durante todos os anos até 1961, eu não estava apenas convencido que sequer uma linha por mim escrita jamais seria publicada durante a minha vida, mas também raramente ousava permitir que os meus íntimos lessem o que eu havia escrito por medo de que o fato se tornasse conhecido". Publicou ainda nos EUA uma obra sobre um gigantesco tabu que é a proeminência dos judeus russos no Partido Comunista e na polícia secreta soviética, sendo tachado como antissemita e desmoralizado no seu exílio.
Soljenítsin morreu em Moscou, em 3 de agosto de 2008, em consequência de uma insuficiência cardíaca aguda.
(2) Por que o título "Arquipélago Gulag"?
O livro de cerca de 700 páginas é uma narrativa sobre fatos que foram presenciados pelo autor, prisioneiro durante onze anos, em Kolima, num dos campos do arquipélago, e por duzentas e trinta e sete pessoas, que confiaram as suas cartas e relatos a Aleksandr Soljenítsin. O autor dedicou-o "a todos quantos a vida não chegou para o relatar. Que eles me perdoem não ter visto tudo, não ter recordado tudo, não me ter apercebido de tudo".
O título é uma combinação da palavra “arquipélago”, o coletivo de ilhas, com o termo "Gulag", sigla que, em linhas gerais, significa Administração Geral dos Campos de Trabalho Correcional e Colônias, que, segundo o autor, criou corpo e se consolidou entre fins de 1910 e 1956, estando, portanto, no cerne da política soviética de repressão e cerceamento das liberdades individuais de pensamento e ação. A obra faz referência à dimensão de tal sistema prisional em que as unidades, tal qual um arquipélago, estavam dispersas como ilhas entre si ao longo do vasto território soviético, em especial, por regiões de natureza inóspita. Conforme Soljenítsin, "a região de Kolima era a maior e a mais célebre ilha, o pólo de ferocidade desse assombroso Arquipélago de Gulag, desgarrado pela geografia num arquipélago, mas psicologicamente ligado ao continente, a esse quase invisível, quase intangível país habitado pelo povo zek."
Os Gulags estiveram presentes em todo o território, da Sibéria à Ásia Central, dos montes Urais a Moscou. O Gulag teve seu cerne na Rússia czarista com os campos de trabalho. Após a Revolução Russa de 1917, assumiu uma forma moderna, tornando-se parte integral do sistema soviético. Em 1921, já havia 84 campos de concentração em 43 províncias. E não parou de crescer - expandiu-se durante a II Guerra Mundial e atingiu seu apogeu no começo dos anos 1930 e 1940. Nessa época, os campos desempenhavam um papel crucial para a economia soviética. Deles provinha um terço do ouro do país, bem como carvão e madeira. Surgiram, aproximadamente, 476 complexos distintos de campos, onde os presos trabalhavam em quase todas as atividades.
Em 1973, "Arquipélago Gulag” surgiu como obra responsável por uma mudança radical na maneira de enxergar o regime soviético. Os depoimentos dos prisioneiros e outros documentos converteram muitos intelectuais de ideologia esquerdista, sobretudo na França, em anti-soviéticos. Aleksandr Solzhenitsyn fez um levantamento de fatos ocorridos após 1918 (ano do seu nascimento) até 1956, denunciando o trabalho escravo dos campos, por onde passaram mais de 18 milhões de pessoas. Dessas, cerca de 6 milhões sofreram o degredo, desterradas para os desertos cazaques e florestas siberianas.
O grande volume de documentos que Soljenitsyn conseguiu reunir em “ Arquipélago Gulag” fez com que a KGB tentasse destruir o seu trabalho. Por conta dessa perseguição, o escritor viveu clandestino até 1973, quando foi exilado. Seis semanas antes, o livro tinha deixado as prensas parisienses em direção ao reconhecimento mundial.
A KGB chegou a confiscar materiais que serviriam de rascunhos, no período entre 1965 e 1967, e, devido ao risco a que estava exposto pela continuidade das investigações, Solzhenitsyn trabalhou as várias partes do seu manuscrito em momentos diferentes, de maneira a não colocar o livro inteiro em perigo. Por esta razão, ele dividiu-o e colocou suas várias partes sob a tutela de amigos, em Moscou e arredores. Utilizando o pretexto de visitas sociais, trabalhava em seu texto nas diversas casas de sua confiança.
Após a conclusão, os manuscritos do original foram mantidos escondidos na Estônia pela filha de Arnold Susi, advogado e ex-ministro estoniano da Educação. Em 1968, “Arquipélago Gulag” foi microfilmado e contrabandeado para fora da União Soviética, por um representante legal, Dr. Fritz Heeb, de Zurique, com o objetivo de dar andamento à publicação.
(3) Qual é a temática do livro "Arquipélago Gulag"?
A obra apresenta diversas informações pormenorizadas sobre a URSS à época de Josef Stalin (de técnicas de tortura à legislação da época, passando por informações geográficas e divagações sociológicas). Solzhenitsyn aborda diversos aspectos sobre o regime totalitário stalinista na URSS entre fins dos anos 1920 e o ano de 1954 (quando veio o ditador veio a falecer). Como era a detenção? Como era feito o transporte dos prisioneiros? Em que condições ocorriam os interrogatórios? Como eram as condições nas prisões? Como a legislação da época tratava das prisões políticas e das violações de direitos humanos fundamentais? Solzhenitsyn relata os piores pormenores possíveis acerca das crueldades cometidas ao longo de todo o processo (indo de esmagamento dos testículos com botas, prisões arbitrárias, estupros e abusos de todos os tipos contra mulheres prisioneiras, alimentação sub-humana, como por exemplo, sopas com ossos de peixes e pães secos feitos com cascas de batatas, alojamentos com dormitórios em beliches com dezenas de pessoas aglomeradas e sem qualquer proteção contra o rigoroso inverno russo, etc.).
A narrativa começa por ocasião da prisão de Soljenitsyn, em 1945, condenado sem o devido processo legal e sentenciado a oito anos de prisão e mais outros três anos de confinamento no Gulag. Relata as condições de vida de um “zek” (uma corruptela do termo "zakliuchennyi", que significa prisioneiro), detalhando circunstâncias que só poderiam ser vistas de dentro: o transporte para o Gulag, os interrogatórios, o sistema de trabalho escravo, as rebeliões e tentativas de fuga, o conjunto de procedimentos que os presos conheciam por "o moedor de carne". Divulga, inclusive, a existência de uma equipe de cientistas, também prisioneiros, liderados por Andrei Sakharov, que criou uma bomba de hidrogênio para a União Soviética.