A PERSEGUIÇÃO DO ESTADO VARGUISTA AO DEMOCRATA E LIBERAL ANÍSIO TEIXEIRA EM 1935: O EQUÍVOCO DOS SETORES TRADICIONAIS DA SOCIEDADE BRASILEIRA EM ENXERGAREM O "PERIGO VERMELHO" EM TODOS OS INDÍVIDUOS, LUGARES E MOMENTOS

Por RAQUEL PEREIRA CHAINHO GANDINI (FACULDADE DE EDUCAÇÃO - UNIVERSIDADE DE CAMPINAS, UNICAMP)
O Estado que se forma a partir da Revolução de 1930 e se consolida no período de 1930 a 1937, representa uma forma de realização do próprio capitalismo, sob a a aparente desvinculação da elite dirigente das classes dominantes, ou seja, através da autonomia do poder político executivo e submissão dos diferentes setores da burguesia, na medida em que não se caracterizava como um simples órgão executivo da burguesia. Este tipo de regime político emerge em situação específica de necessidades que são impostas ao capitalismo, de acordo com as leis do desenvolvimento desigual e combinado.
A necessidade da burguesia do Brasil de abdicar do poder político para poder continuar a "ganhar dinheiro", como nos fala Barrington Moore, é que a leva, por via indireta, ao processo de "eliminação da tolerância", virtude que, em situação de maior segurança econômica, é defendida como um princípio inabalável. Não somente o "comunista" é o seu inimigo, mas a defesa de sua própria retórica soa para ela como uma oposição a ser eliminada. Como afirma Karl Marx em "O 18 Brumário e cartas a Kugelmann", "assim, denunciando agora como 'socialista' tudo o que anteriormente exaltara como 'liberal', a burguesia reconhece que seu próprio interesse lhe ordena subtrair-se aos perigos do self-government; (...) que, a fim de salvar sua bolsa, deve abrir mão da coroa, e que a espada que a deve salvaguardar é fatalmente também uma espada de Dâmocles suspensa sobre sua cabeça". Será dentro de um mesmo processo de "caça às bruxas" e para atender às mesmas finalidades que Anísio Teixeira será afastado do aparelho de Estado.
A condição de elemento indesejável ao sistema lhe é atribuída, portanto, não por um antagonismo fundamental ao arranco industrial pretendido, nem pela via capitalista que se seguia, mas pelo tipo específico de transição que se operava.
Um outro ponto ainda incompatibilizava Anísio Teixeira: sua oposição à escola confessional e a necessidade que o Estado encontrava de contar com o apoio da Igreja Católica. A posição da Igreja também se consolida em termos antiliberais investindo particularmente contra a racionalidade instrumental. A Igreja vê na corporação uma forma de realização do bem comum, mas com autonomia do poder estatal. A relação da Igreja Católica com os regimes fascistas da Itália, Portugal, Espanha, Áustria e Grécia foi estabelecida através de uma aliança, pela qual ambos se reforçavam mutuamente, tendo o fascismo devolvido à Igreja certas posições e privilégios que ela havia perdido em consequência do processo de secularização do Estado, entre elas a prerrogativa de ensinar religião nas escolas. Nesse sentido, conforme Kühnl Reinhard afirma no livro "Liberalismo y fascismo - dos formas de domínio burgués", "há os seguintes pontos em comum entre a Igreja e o fascismo: antagonismo ao socialismo, ao liberalismo, ao racionalismo e ao ateísmo. Por outro lado, convergiam no irracionalismo como base de fé, nas concepções reacionárias no campo da moral, da sexualidade e da família e ainda nos critérios organizacionais baseados na hierarquia e na autoridade".
Anísio Teixeira recebera a Diretoria da Instrução Pública do Distrito Federal para continuar o trabalho iniciado, antes da Revolução de 1930, por Carneiro Leão e Fernando de Azevedo. Este seu trabalho se inscreve, portanto, no clima reformista da instrução da década final da Primeira República, quando então encontrara condições para se implantar, ao nível dos Estados. O sentido geral em que se inscrevem essas reformas é liberal, como no caso de Anísio especificamente. Todavia, é inegável que a penetração do ideário da Escola Nova nos sistemas escolares na década de 1920 significou uma tentativa de atualização em relação ao processo educacional do mundo todo e, portanto, uma revolta contra os padrões tradicionais, até então controlados pela Igreja.
Quando da votação da Constituição de 1934, os católicos conseguiram um objetivo fundamental: quebrar a laicidade da Constituição de 1891, fato que se desdobra em diversas conquistas: assistência espiritual e hospitalar às Forças Armadas, voto dos religiosos, liberdade dos sindicatos operários católicos, descanso dominical, reconhecimento do casamento religioso para fins civis, autorização para cemitérios religiosos. Quanto à educação, conseguiram a aprovação do ensino religioso nas escolas primárias, secundárias e normais durante o período normal das aulas. Outra vitória da Igreja foi a rejeição de emendas que propunham a introdução de educação sexual nas escolas, a liberdade acadêmica e instituição de concursos para docentes de escolas particulares.
Por outro lado, a vitória dos liberais reformadores se constituía na aprovação do grande número de suas propostas que foram incorporadas à Constituição e, entre elas, garantiu a escolarização gratuita universal e obrigatória. Outras vitórias: atribuição de competência intervencionista e diretora ao Governo Central, porcentagens mínimas de subvenção dos cofres municipais, estaduais e federais e outros recursos extras a fim de subsidiar a educação. Ainda mais, conservou certa margem de flexibilidade para os Estados e Distrito Federal. A derrota dos reformadores foi a rejeição dos projetos de neutralidade e laicidade do ensino.
Essa situação ambígua por certo não se manteria por muito tempo e a definição da orientação estatal não demoraria. Depois da votação da Constituição, em julho de 1934, o clima de tensão seria acentuado e em 1935 o golpe de 1937 projetava sua sombra. As greves dos trabalhadores vinham ocorrendo desde 1930 e intensificaram-se em 1934 e 1935. A partir dessa data, após dura repressão e eliminação das lideranças mais ativas, a mobilização para a efetivação do sindicalismo corporativista é acentuada. Até aquela época o Governo havia encontrado grande resistência para o enquadramento dos sindicatos na estrutura corporativista. A crescente tensão social culmina com a repressão ao movimento da Aliança Nacional Libertadora. A essa altura a oligarquia rural já cedera seus princípios liberais sob ameaça do "perigo vermelho". O mesmo ocorre com os empresários, os quais, sindicalizando-se muito mais rapidamente do que a classe operária, demonstram a quem atendia a estrutura corporativa.
A acusação de ser conselheiro político do prefeito Pedro Ernesto, suposto simpatizante da Aliança Nacional Libertadora, foi acrescentada como golpe final às pressões que o clero e a liderança católica vinham fazendo sobre Anísio Teixeira durante os últimos quatro anos. O alvo principal era o prefeito Pedro Ernesto, certamente, mas de início foi-lhe pedida a cabeça de Anísio. Porém, ao ceder, o prefeito não salvou a sua própria, tendo sido preso em 1936.
A participação de Anísio na movimentação de 1935, como conselheiro político de Pedro Ernesto, é improvável, dado que ele era pragmaticamente contra a utilização de métodos violentos. Por outro lado, em termos hipotéticos, a situação inversa seria muito mais provável: Anísio acreditava-se "educador" ou "técnico", condição por ele entendida como apolítica. Entretanto, não representava ele um "técnico" para seus oponentes, particularmente para a ala católica. Além de solapar a influência religiosa ao lutar pela escola não-confessional, Anísio defendia a livre discussão para que pudessem predominar os mais inteligentes, e certamente o momento não permitia essas bandeiras eminentemente políticas.
O ano de 1935 não estava orientado para a "pacificação". Ao contrário, tratava-se da "eliminação" de dissidências ou de lideranças, ainda que fosse liberais, sob a égide da "conservação da ordem". Qualquer posição questionadora adquiriu tons 'vermelhos' e deveria ser eliminada em "benefício da sociedade e da segurança pública". Era também uma forma de ceder trunfos à parcela conservadora oligárquica que não tinha se desalojado totalmente do poder e que significava, para o Executivo que se fortalecia, uma força ainda importante, com a qual precisava jogar. O que ocorre com Anísio Teixeira nesta fase é um episódio do processo de autonomização do poder político. Pode ele ser considerado um representante da burguesia na medida em que defendia a propriedade privada e o sistema capitalista, com suas instituições políticas. Eliminando-o, na qualidade de liberal, a burguesia processava a autofagia necessária para se manter no poder, sob a tutela de Vargas. Entregava a este o anéis para não perder os dedos.
Referência:
GANDINI, Raquel Pereira Chainho. Tecnocracia, capitalismo e educação em Anísio Teixeira (1930-1935). Rio de Janeiro; Fortaleza: Civilização Brasileira; Edições Universidade Federal do Ceará, 1980.



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