INVENTÁRIO DE CICATRIZES
(Livro com poemas de vítima da tortura durante a ditadura militar no Brasil - Para que a memória histórica dos anos de chumbo não seja apagada e esquecida)
Por ALEX POLARI DE ALVERGA*
***TRILOGIA MACABRA (I- O TORTURADOR)***
O torturador
Difere dos outros
ser imprevisível
vai da infantilidade total
à frieza absoluta.
Como vivem recebendo
Elogios e medalhas
Como vivem subindo de posto,
Pouco importam pelos outros.
Obter confissões é uma arte
O que vale são os altos propósitos
O fim se justifica,
Mesmo pelos meios mais impróprios.
Além de tudo o torturador,
Agente impessoal que cumpre ordens superiores
No cumprimento de suas funções inferiores,
Não está impedido de ser um pai extremoso
De ter certos rasgos
E em alguns momentos ser até generoso.
Além disso acredita que é macho, nacionalista,
Que a tortura e a violência
São recursos necessários
Para a preservação de certos valores
E se no fundo ele é mercenário
Sabe disfarçar bem isso
Quando ladra.
Não se suja de sangue
Não macera nem marca,
(a não ser em casos excepcionais)
o corpo de suas vítimas,
trabalha em ambientes assépticos
com distanciamento crítico
- não é um açougueiro, é um técnico -
sendo fácil racionalizar
que apenas põe a serviço da pátria
da civilização e da família
uma sofisticada tecnologia da dor
que teria de qualquer maneira
de ser utilizada contra alguém
para o bem de todos.
***TRILOGIA MACABRA (III- A PARAFERNÁLIA DA TORTURA)***
Nos instrumentos de tortura ainda subsistem, é verdade,
Alguns resquícios medievais
Como cavaletes, palmatórias, chicotes
Que o moderno design
Não conseguiu ainda amenizar
Assim como a prepotência, chacotas
Cacoetes e sorrisos
Que também não mudaram muito.
Mas o restante é funcional
Polido metálico
Quase austero
Algo moderno
Com linhas arrojadas
Digno de figurar
Em um museu do futuro.
Portanto,
Para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos,
Não é necessário mais rodas, trações,
Fogo lento, azeite fervendo
E outras coisas
Mais nojentas e chocantes.
Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre
Hoje faz-se morrer a velha morte de sempre
Com muito maior urbanidade,
Sem precisar corar as pessoas bem educadas,
Sem proporcionar crises histéricas
Nas damas da alta sociedade
Sem arrefecer os instintos
Desta baixa saciedade.
* ALEX POLARI DE ALVERGA: Alex Polari de Alverga nasceu em João Pessoa (PB) em 1951, tinha 20 anos de idade e era membro da organização clandestina VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), quando caiu preso, no Rio de Janeiro. Foi barbaramente torturado. Alex Polari testemunhou e escreveu da prisão uma carta à estilista Zuzu Angel, onde narrava as atrocidades cometidas pelos militares contra seu filho, Stuart, militante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Alex Polari passaria seus 20 anos inteiramente na cadeia: condenado a 80 anos de prisão, só foi libertado aos 29, em 1980, após a anistia. Escreveu Inventário de Cicatrizes, com as poesias que escreveu no cárcere. São versos duros, tristes, revoltantes, sobre a tortura nos porões da ditadura militar.
Referência:
ALVERGA, Alex Polari de. Inventário de Cicatrizes. 4. ed. São Paulo: Global, 1979.