A MORTE DO SR. HUMBERTO DE ALENCAR CASTELO BRANCO: A HUMANIDADE PERDEU POUCA COISA, OU MELHOR, NÃO PERDEU COISA ALGUMA
(Fatos históricos e personagens do regime militar brasileiro de 1964 a 1985)
Em 19 de julho de 1967, a face dura do regime militar se mostrou na prisão-desterro em Fernando de Noronha do jornalista Hélio Fernandes, que havia adquirido o jornal "Tribuna da Imprensa" de Carlos Lacerda (que era governador da Guanabara e uma das lideranças político-civis que contribuíram para o Golpe de 1.º de abril de 1964 contra o Presidente João Goulart), por conta de um artigo intitulado "A morte do Sr. Humberto de Alencar Castelo Branco" no qual se referia ao general, falecido em um acidente de avião, como um "homem frio, impiedoso e vingativo". O jornalista combativo, candidato a deputado federal pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro), mas cassado em 1966, e redator do Manifesto da Frente Ampla (lançado por Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart contra o regime militar) já havia comemorado o fim do governo Castelo em outro artigo polêmico. Sem nenhum pudor jurídico, o ministro da Justiça do Governo Costa e Silva, Gama e Silva, evocou os poderes do Ato Institucional n.º 2 (AI-2) para prendê-lo e desterrá-lo, mesmo que houvesse uma Constituição que, teoricamente, tinha tornado o tal Ato uma letra morta. Como afirma o historiador Marcos Napolitano na obra 1964: História do Regime Militar Brasileiro, "era um sintoma que o espírito de 1968, o ano que não terminaria, já tinha começado em 1967"(p. 87).
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Pelo Jornalista HÉLIO FERNANDES (Artigo publicado em 19 de julho de 1967 no Jornal "Tribuna da Imprensa" - Rio de Janeiro)
"NUNCA pude entender o fato de se chocarem e lamentarem TODAS as mortes indistintamente. Se todos têm que morrer algum dia, se a morte é a finalização natural e inevitável da vida, sempre escapou à minha compreensão o fato de se nivelarem todos na mesma dor, moços e velhos, heróis e covardes, alentos e medíocres, gente que contribuiu para progresso e dignificação da humanidade e gente que não fez outra coisa senão explorá-la.
A VIDA é que classifica os homens e a morte, sendo inevitável, não pode ser mais do que um julgamento, um encontro de dever e haver. Se os canalhas também morrem, por que consagrá-los com as mesmas lágrimas que se destinam aos que não tiveram outro modo de vida e deram a ela todo o seu desprendimento e toda a sua grandeza?
É DIGNA de meditação a confissão de Humberto de Campos que quando tinha cinco anos de idade, compareceu orgulhoso diante de outros meninos da sua rua porque era o avô dele que estava morto e não o avô dos outros... O famoso escritor já tinha a intuição de que a morte era um julgamento, e que influenciá-lo estava acima das suas forças. Não podendo influenciá-lo, comemorava-o...
Nestes dias mesmo, ocorreram algumas mortes sentidas e lamentadas, umas pela saudade antecipada que provocaram; outras porque cortaram inesperadamente uma obra não terminada; outras ainda porque os que morriam haviam cumprido integralmente o seu dever e se despediam da vida levando a admiração e o respeito dos que ficavam. Foi assim com Fontenelle, com Ribeiro da Costa, com Vivien Leigh, com Aderaldo.
Com a morte de Castelo Branco (acontecida ontem num desastre em Messejana), a humanidade perdeu pouca coisa, ou melhor, não perdeu coisa alguma. Com o ex-presidente, desapareceu um homem frio, impiedoso, vingativo, implacável, desumano, calculista, ressentido, cruel, frustrado, sem grandeza, sem nobreza, seco por dentro e por fora, com um coração que era um verdadeiro deserto do Saara.
INCAPAZ para as grandes admirações, incapaz de enxergar a beleza da vida, incapaz de compreender que a vida não é apenas um desfile de misérias e crueldade (diante da qual ele se mantinha indiferente) e que precisamente os homens que se rebelam contra esse estado de coisas é que se exaltam acima da pequenez comum, o sr. Humberto de Alencar Castelo Branco fez do exercício do Poder uma coisa humilhante e pouco edificante, morrendo sem seguidores e sem admiradores, e até sem amigos, íntimos ou não.
NA SUA concepção de vida, o sr. Castelo Branco cometeu um erro fatal, um erro que estava visceralmente dentro dele. Ele pensou que a arrogância, a prepotência e a presunção é que elevavam os homens no conceito geral, quando a classificação é inteiramente diferente, feita de forma invisível, mas rigorosamente infalível. É a própria grandeza de cada um ou a própria mesquinhez que lhes garante um lugar num lado ou no outro. E o sr. Humberto de Alencar Castelo Branco era inapelavelmente em vida, e será sempre, depois da morte, um homem mesquinho e sem grandeza.
O SR. Castelo Branco confundiu notoriedade com popularidade, pensou que tendo estado durante tantos anos no centro dos acontecimentos era um homem importante. Não é, não será jamais, vivo ou morto. E os que não souberam dar uma destinação grandiosa às suas vidas não podem esperar de forma alguma, depois de mortos, nem o respeito, nem a gratidão, e muito menos a admiração dos que ficaram.
FELIZMENTE (e a apreciação nem é original) é a vida que revela as eminências. A morte apenas nivela os homens, colocando a todos, sem apelação, dentro da mesma realidade. E só a dimensão da História desenterra alguma, mantendo-os pela eternidade, coisa que evidentemente não acontecerá com Castelo Branco, que, em termos de grandeza Histórica, devia ter uns 50 centímetros de altura. Ou menos ainda...
A VIDA de ex-presidente é a sua própria condenação. Para mostrar a sua pequena estatura, não é preciso carregar nas tintas. Basta mostrá-lo como ele foi, dizer o que ele não fez, as chances que teve e desperdiçou, o Poder que usou para a perseguição e para a mesquinhez, o que poderia ter feito pelo seu povo, pela sua Pátria, pela sua gente. Não vamos canonizá-lo ou deixar que se tranforme em herói, apenas porque um avião se chocou com outro e ele desapareceu de cena, inesperadamente, antes de ser colhido pelo desprezo geral. Se a morte (qualquer que fosse ela) pudesse purificar os seres humanos dos seus sentimentos mais mesquinhos, então a vida deixaria de ter significação, e o mundo mereceria o caos e a barbárie, ultrapassados precisamente por causa da grandeza e do heroísmo de alguns poucos.
SE TIVÊSSEMOS de pôr à margem de todas conquistas da humanidade, conquistas obtidas através de personagens que se elevaram acima de si mesmo, superando as suas fragilidades congênitas ou adquiridas, e fôssemos exaltar aqueles que negaram tudo isso, apenas porque morreram num desastre mais ou menos dramático, então a vida não teria mais razão de ser, e poderíamos até criar um corpo de carpideiras profissionais (pago pelos cofres públicos), encarregadas de chorar, na mesma intensidade e no mesmo tom, por todos os mortos da vida pública.
A VIDA deu ao sr. Humberto de Alencar Castelo Branco muito mais do que ele merecia. Deu-lhe em vida o Poder que ele desbaratou ou usou precisamente para humilhar, para escravizar ou para perseguir, e para o qual estava rigorosamente despreparado. E na morte, deu-lhe um final inteiramente inesperado, pois o que Castelo Branco merecia era ter morrido numa cama confortável, com as janelas fechadas, sem uma só estrela no céu, e sem ninguém que lhe colocasse uma flor entre as mãos ou uma palavra de arrependimentos nos lábios.
NÃO CHOREI a morte de Ribeiro da Costa ou do coronel Fontenelle porque ambos cumpriram integralmente o seu destino na vida, e não se chora os homens realizados, que viverão sempre na nossa saudade. Não choro a morte de Castelo Branco porque não se iguala mesmo na morte a bravura e a intrepidez dos que resistiram sempre a tudo com a insensibilidade dos que sempre traíram a História dos povos e da própria humanidade.
CASTELO Branco, na sua longa vida, nunca amou nem foi amado. Como chorar um homem assim, cuja morte só desperta indiferença, cuja vida foi um ato deliberado de desconfiança e de malquerença, sem nenhum desprendimento, sem um gesto de coragem, sem um aceno de emoção, sem um momento de grandeza, sem um instante de piedade, de recolhimento ou de humildade?
NA POBRE carepa que há de cobrir os tristes restos mortais de Humberto de Alencar Castelo Branco, e onde dormirá o sono eterno dos injustos, não haverá lugar sequer para um epitáfio. A não ser que com assomo de sinceridade se pudesse escrever no mármore frio: 'Aqui jaz quem tanto desprezou a humanidade, e acabou desprezado por ela'. HELIO FERNANDES".