CREIO NA FORÇA DAS IDEIAS E NO DIÁLOGO, CREIO NO REGIME DEMOCRÁTICO*: DISCURSO DE CRÍTICA AO GOVERNO DE COSTA E SILVA ÀS VÉSPERAS DO ATO INSTITUCIONAL N.º 5
(Fatos e personagens históricos do Regime Militar Brasileiro de 1964-1985)
Em setembro de 1968, o deputado Márcio Moreira Alves chamou o Exército de "valhacouto de torturadores". O congressista estava indignado com as violências cometidas durante a invasão da Universidade de Brasília (UnB), e falava com propriedade, pois tinha acompanhado a questão das torturas no Nordeste e a atitude complacente da Missão Geisel (1964), episódio que rendeu um dos primeiros livros sobre o tema no Brasil.
O Exército se declarou ofendido, e o governo pediu que o deputado fosse licenciado para ser processado. A Câmara dos Deputados negou a licença do deputado, por 216 votos contra 141. Até parte da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido oficial, votou contra o governo. Até a votação, os debates na Casa foram intensos, e o discurso a seguir do deputado Mário Covas entrou para a história da oratória parlamentar.
***
Por DEPUTADO FEDERAL MÁRIO COVAS EM 12/12/1968
"A causa que somos obrigados a apreciar sobrepaira, superpõe-se às próprias agremiações partidárias. Em sua análise, o coletivo domina o individual, o institucional supera o humano, a impessoalidade há de ser o traço marcante, eis que, hoje, esta Casa está sendo submetida a julgamento. Recolhida ao banco dos réus, aguarda o veredicto que será exarado pelos seus próprios ocupantes.
A acusação é o crime de injúria a uma instituição – as Forças Armadas. A arma, a palavra. O instante; os dias em que atingiu o clímax, a alta tensão emotiva emergente dos episódios relacionados com a invasão da Universidade de Brasília.
Conveniente seria lembrar que, de 1946 a esta data, dezenas de pedidos de licença foram encaminhados a esta Casa para processar parlamentares. Várias acusações formuladas, capituladas nos mais variados artigos do Código Penal. Entretanto, mesmo em ocasiões em que o Deputado abria mão de suas franquias, solicitando mesmo a concessão, a Câmara invariavelmente adotou idêntica conduta – a negativa – sustentada por um mesmo princípio: imunidade parlamentar.
Agora, acusa-se um Deputado de pretenso crime político. Não vejo como, moralmente, se possa sustentar a concessão, sem que a Câmara incida numa mesquinha exibição de intolerância e incoerência, desnudando-se, em vista dos precedentes, num farisaísmo abominável.
Resta-nos o argumento dos simplistas: trata-se de uma exigência.
As Forças Armadas impõem uma reparação, atingidas que foram em seus brios. Se esta afirmação fosse verdadeira – o que contesto – eu diria que ela apresenta uma deformação originária: não é possível desagravar uma instituição pelo caminho inviável do desrespeito a um Poder. Para que tenha significação e validade, a manifestação de apreço desta Casa ou de qualquer dos seus membros a qualquer instituição, necessário se faz que ela se auto respeite.
Que conceito se faria de um chefe de família que, para exaltar as virtudes de seu vizinho, aviltasse o procedimento de seus filhos? O elogio, sob o império da subserviência, transforma-se em bajulação. Seu valor está na dimensão moral e na autoridade de que de quem o manifeste.
Como acreditar que as Forças Armada brasileiras que foram defender em nome do povo brasileiro, em solo estrangeiro, a liberdade e a democracia no mundo, colocassem como imperativo de sua sobrevivência o sacrifício da liberdade e da democracia no Brasil?
Creio no povo, anônimo e coletivo, com todos os seus contrastes, desde a febre criadora à mansidão paciente. Creio ser desse amálgama, dessa fusão de almas e emoções, que emana não apenas o Poder, mas a própria sabedoria. Creio na palavra ainda quando viril ou injusta, porque acredito na força das ideias e no diálogo que é seu livre embate. Creio no regime democrático, que não se confunde com a anarquia, mas que em instante algum possa rotular ou mascarar a tirania. Creio no Parlamento, ainda que com suas demasias e fraquezas, que só desaparecerão se o sustentarmos livre, soberano e independente. Creio na liberdade, este vínculo entre o homem e a eternidade, essa condição indispensável para situar o ser à imagem e semelhança de seu criador.
As vozes do gênio do Direito e da Deusa da Justiça podem ser ouvidas em seu patético apelo: 'Não permitais que um delito impossível' possa transformar-se no funeral da Democracia, no aniquilamento de um Poder e no cântico lúgubre das liberdades perdidas".
Imagem da invasão da Universidade de Brasília em 1968 pelo Exército. Disponível em:
Discurso disponível em: