A ARTE COMO EXPERIÊNCIA
Por JOHN DEWEY
"Não possuímos em inglês palavra que sem ambiguidade inclua o que é significado pelas duas palavras 'artístico' e 'estético'. Desde que 'artístico' se refere primordialmente ao ato de produção, e 'estético' ao de percepção e apreciação, a ausência de um termo designando os dois processos tomados em conjunto é lamentável. Algumas vezes, a consequência se torna a separação dos dois processos um do outro, a consideração da arte como algo que se superpõe ao material estético, ou, do outro lado, a assunção de que, uma vez que a arte é um processo de criação, a percepção e a apreciação da mesma nada tem a ver com o ato criativo. Em qualquer dos casos, há certa inépcia verbal pela qual nos vemos compelidos a algumas vezes utilizar o termo 'estético' para cobrir todo o campo e algumas vezes a limitá-lo ao aspecto receptivo-perceptivo da operação total. Faço referência a tais fatos óbvios enquanto preliminares com relação a uma tentativa de mostrar como a concepção de experiência consciente enquanto relação percebida entre o fazer e o padecer torna-nos aptos para a compreensão da conexão que a arte enquanto produção e percepção, e a apreciação enquanto gozo, mantêm uma com relação à outra.
O artesanato, para ser artístico no sentido próprio, tem de ser 'afetuoso'; tem de cuidar profundamente do objeto sobre o qual é exercida a habilidade. Vem-me à mente um escultor, cujos bustos são maravilhosamente exatos. Seria difícil dizer, diante de uma fotografia de um deles e de uma fotografia do original, qual seria a da própria pessoa. Do ponto de vista virtuosístico, são extraordinários. Contudo, é duvidoso que o escultor dos bustos tenha tido uma experiência própria que estava interessado em compartilhar com os que apreciam suas produções. Para ser verdadeiramente artística, uma obra tem também de ser estética - isto é, feita para ser gozada na percepção receptiva. A observação constante é, naturalmente, necessária para o autor enquanto está produzindo. Mas, se sua percepção não é também de natureza estética, não passa de um reconhecimento descolorido e frio daquilo que foi feito, utilizado como um estímulo para o passo seguinte em um processo essencialmente mecânico.
Em uma palavra, a arte, em sua forma, une as mesmas relações de fazer e padecer, a energia de ida e de vinda, que faz com que uma experiência seja uma experiência. Por causa da eliminação de tudo o que não contribui para a mútua organização dos fatores da ação e da recepção, e por causa da seleção justamente dos aspectos e traços que contribuem para a sua interpenetração, o produto é uma obra de arte estética. O homem talha, esculpe, canta, dança, gesticula, modela, desenha e pinta. O fazer ou obrar é artístico quando o resultado percebido é de tal natureza que 'suas' qualidades 'enquanto percebidas' controlaram a produção. O artista incorpora a si próprio a atitude do que percebe, enquanto trabalha.
O processo da arte na produção está relacionado organicamente com o estético na percepção - como o Senhor Deus, na criação, inspecionou sua obra e viu que era boa. Até que o artista esteja satisfeito com a percepção do que está fazendo, continua formando e reformando. O fazer chega a um fim quando seu resultado é experimentado como bom - e essa experiência vem não por mero juízo intelectual e externo, mas na percepção direta. Um artista, em comparação com seus próximos, é alguém que não apenas é especialmente dotado com poderes de execução, mas também com sensibilidade incomum para as qualidades das coisas. Tal sensibilidade dirige também seu fazer e seu obrar.
Quando manipulamos, tocamos e sentimos; quando olhamos, vemos; quando escutamos, ouvimos. A mão move-se com o estilete de gravador ou com o pincel. Os olhos observam e relatam as consequências do que foi feito. Por causa dessa íntima conexão, o fazer subsequente é cumulativo e não questão de capricho, nem tampouco de rotina. Numa enfática experiência estético-artística, a relação é tão íntima que controla simultaneamente o fazer e a percepção. Tal intimidade vital de conexão não pode ser tida se apenas as mãos e os olhos estiverem engajados. Quando eles não podem, ambos, agir enquanto órgãos do ser em sua inteireza, ocorre apenas uma sequência mecânica de sensação e movimento, como no caso de se andar automaticamente. As mãos e os olhos, quando a experiência é estética, são instrumentos através dos quais a criatura viva inteira, totalmente ativa e em movimento, opera. Então a expressão é emocional e guiada por um propósito.
Se o artista não produzir uma nova visão em seu processo de fazer, agirá mecanicamente e repetirá algum antigo modelo fixado como um padrão em sua mente. Uma quantidade incrível de observação e do tipo de inteligência que se exerce na percepção de relações qualitativas caracteriza a obra criativa em arte. As relações têm de ser distinguidas não apenas uma com respeito à outra, duas as duas, mas em conexão com o todo em construção; são exercidas na imaginação tanto quanto na observação. Surgem irrelevâncias que representam distrações tentadoras; fazem-se presentes digressões sob a aparência de enriquecimentos. Há ocasiões em que a captação da ideia dominante torna-se tênue, e então o artista é inconscientemente movido a demorar-se nela até que seu pensamento volte a fortalecer-se. O trabalho real de um artista é construir uma experiência coerente na percepção, ao mesmo tempo que um movimento acompanhado de mudança constante em seu desenvolvimento.
Quando um autor transfere para o papel ideias já claramente concebidas e coerentemente ordenadas, o trabalho real antecedeu o ato de escrever. Por outro lado, o autor pode apoiar-se na maior perceptibilidade induzida pela atividade e por sua repercussão sensível para dirigir a consumação da obra. O simples ato da transcrição é esteticamente irrelevante, salvo na medida em que participe integralmente da formação de uma experiência que se mova para o completar-se. Mesmo a composição concebida no cérebro e, portanto, fisicamente privada, é pública em seu conteúdo significativo, de vez que é concebida com referência à execução geradora de uma produção perceptível e, portanto, pertencente ao mundo comum. De outro modo ela seria uma aberração ou um sonho passageiro. O impulso para expressar pela pintura as qualidades percebidas de uma paisagem é contínuo em relação à exigência de lápis ou de pincel. Sem incorporação externa, uma experiência permanece incompleta; fisiológica e funcionalmente, os órgãos dos sentidos são os órgãos motores e estão conectados, por meio da distribuição das energias no corpo humano e não apenas automaticamente, com outros órgãos motores. Não é por qualquer acidente linguístico que 'edificação', ' construção' e 'obra' designam tanto um processo quanto seu produto acabado. Sem o significado do verbo, permanece vazio o do substantivo.
Todos sabem que ver através de um microscópio ou telescópio requer aprendizado, assim como ver uma paisagem tal qual o geólogo a vê. A ideia de que a percepção estética é questão de momentos singulares é uma das razões para o atraso das artes entre nós. Os olhos e o aparelho visual podem estar intactos; o objeto pode estar fisicamente aqui, a catedral de Notre-Dame, ou o retrato de Hendrik Stoeffel por Rembrandt. Em certo sentido superficial, podem ser 'vistos'. Podem ser olhados, possivelmente reconhecidos, e ter seus nomes corretamente apostos. Mas, por falta de interação contínua entre o organismo total e os objetos, não são percebidos, certamente não esteticamente. Um grupo de visitantes, conduzidos através de uma galeria de pintura por um guia, com a atenção chamada aqui e ali para algum ponto importante, não percebe; só por acidente haverá interesse em ver uma pintura pelo tema vividamente realizado.
Porque, para perceber, um espectador precisa 'criar' sua própria experiência. E sua criação tem de incluir conexões comparáveis àquelas que o produtor original sentiu. Não são as mesmas, em qualquer sentido literal. Não obstante, com o espectador, assim como com o artista, tem de haver uma ordenação dos elementos do todo que é, quanto à forma, ainda que não quanto aos pormenores, a mesma do processo de organização que o criador da obra experimentou conscientemente. Sem um ato de recriação, o objeto não será percebido como obra de arte. O artista selecionou, simplificou, clarificou, abreviou e condensou de acordo com seu desejo. O espectador tem de percorrer tais operações de acordo com seu ponto de vista próprio e seu próprio interesse. Em ambos tem lugar um ato de abstração, isto é, de extração do que é significativo. Em ambos, há compreensão, em sua significação literal - isto é, um ajuntar minúcias e particularidades fisicamente dispersas em um todo experienciado. Há um trabalho realizado pelo que percebe, assim como pelo artista. Aquele que, por ser demasiadamente preguiçoso, frívolo ou obstinado nas convenções, não efetue esse trabalho, não verá, nem ouvirá. Sua 'apreciação' será uma mistura de fragmentos do saber em conformidade com normas de admiração convencional e com uma confusa, ainda se genuína, excitação emocional.
Um objeto é peculiar e dominantemente estético, produzindo a satisfação característica da percepção estética, quando os fatores que determinam o que quer que possa ser chamado 'uma' experiência elevam-se por sobre o limiar da percepção, e são tornados manifestos por si próprios".
Referência:
DEWEY, John. A arte como experiência. In: Coleção Os Pensadores. Trad. Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 87-105.
Comentários
Postar um comentário
Evitar comentários que: (1)sejam racistas, misóginos, homofóbicos ou xenófobos; (2) difundam a intolerância política; (3) atentem contra o Estado Democrático de Direito; e (4) violem a honra, dignidade e imagem de outras pessoas. Grato pela compreensão.