CANÇÃO DA DESPEDIDA: O ATO INSTITUCIONAL N.º 5 DE 1968 E O EXÍLIO DE GERALDO VANDRÉ

(Histórias sobre a Ditadura Militar de 1964 a 1985 e a Música Popular no Brasil que não devem ser esquecidas...)

Por Dalva Silveira (Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais - PUC-SP)
Poucos sentiram tão fortemente o peso da ditadura militar como Geraldo Vandré. E a maior responsável por isso foi sua canção "Pra não dizer que não falei de flores", ou "Caminhando", apresentada no III Festival Internacional da Canção, no dia 29 de setembro de 1968. A canção ficou em segundo lugar (perdeu para Sabiá, de Chico e Tom Jobim, que receberam a maior vaia de suas vidas), mas foi cantada e recantada pelo público e chamada como a "Marselhesa Brasileira".
O certo é que, após o sucesso estrondoso de "Caminhando"', um verdadeiro hino contra a ditadura, a vida de Vandré tornou-se um martírio. Para se ter uma ideia, Zuenir Ventura faz uma referência a um artigo revoltado de um General, publicado no Jornal do Brasil em 06 de outubro de 1968, com o militar dizendo que a final do Festival da canção contemplara 3 injustiças: (1) Do Júri, ao colocar a música em segundo lugar, desconsiderando a "pobreza" da letra com seus gerúndios e rimas terminadas em "ão", sem falar da canção em dois acordes; (2) Do público, que vaiou "Sabiá"; (3) De Geraldo Vandré, que se insurgira contra "soldados armados". Mas, neste caso, o general dizia que apenas essa terceira injustiça poderia ser reparada.
No Jornal Estado de São Paulo de 05/08/1995, consta que Geraldo Vandré teria rompido com o Trio Marayá, que cantou com ele no Festival da Canção de 1968, e montou um novo grupo para acompanhá-lo numa turnê: o Quarteto Livre, do qual Geraldo Azevedo fazia parte do grupo.
Antes mesmo da canção "Caminhando" ser proibida oficialmente no dia 23 de outubro de 1968, os discos já eram apreendidos, e Vandré vivia na paranoia de ser preso. Medo que se intensificou na sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, quando veio o AI-5, que fechava o Congresso Nacional, suprimia garantias individuais (como o habeas corpus) e fazia com que a ditadura mostrasse sua face mais horrenda.
Vandré era advogado e sabia dos riscos que corria. Passou a se esconder e viver na clandestinidade, mesmo sem saber se ele seria preso ou não, e, como relata Dalva Silveira, no seu livro "Geraldo Vandré: A vida não se resume em festivais", ele passou a planejar a fuga para um autoexílio. Mas, antes de fugir do Brasil, Vandré passou um tempo escondido com ajuda da viúva de Guimarães Rosa.
No período em que estava foragido, uma das pessoas que tinha acesso a Geraldo Vandré era Geraldo Azevedo, que compunha o "Quarteto livre", banda que o acompanhara na turnê do Show "Pra não dizer que não falei de flores", cujo título, censurado, passou a ser "Socorro – a poesia está matando o povo". Segundo Geraldo Azevedo, "eu já morava no Rio de Janeiro e fui convidado pelo Geraldo Vandré para participar do show 'Pra Não Dizer que Não Falei das Flores'. Nessa época, começamos a compor 'Canção da Despedida', mas logo depois veio o AI-5 e o Vandré, assim como muitos outros artistas, precisou deixar o país. Mesmo com ele escondido, nós terminamos a música. Mas ela, é claro, não foi liberada pela censura, porque um dos versos falava de um 'rei mal coroado'. Além disso, afirma o mesmo artista que se comportava 'como um militante de organização clandestina; entrava num carro, mudava para outro, fazia tudo para despistar pessoas da repressão que pudessem estar me seguindo para chegar a Vandré".
A música Canção da Despedida é constituída de uma forte crítica à ditadura, disfarçada de uma história que narra a separação de um casal de amantes. Em Canção da despedida, a figura enunciativa representada por Vandré interpreta uma história de amor vivida por um casal de amantes no período da ditadura militar após a instauração do AI-5, com vistas a atingir a figura do ditador da época, ao compará-lo nas letras da música com Um rei mal coroado, / Não queria / O amor em seu reinado, que pode ser parafraseado por um general imposto que negava a liberdade do povo em seu país.
No acontecimento de enunciação do texto musical Canção da Despedida, temos um locutor representado pela figura enunciativa de Vandré (locutor/cantor), que interpreta a própria história de sua partida sob o argumento de perseguição política, que culminou com o seu ato de despedida nas letras da canção, e uma alocutária, representado pela figura enunciativa da amante (alocutária-Amor), que também possui duplicidade de sentidos que remete ao (alocutário – Brasil) a quem o locutor se dirige nos versos: (1) Amor não chora, se eu volto é pra ficar (estrofe I verso 2); (2) Amor não chora, que a hora é de deixar (estrofe I, verso 2); (3) Amor não chora, eu volto um dia (estrofe III, verso 1).
O articulador argumentativo mas no verso 1 Já vou embora, mas sei que vou voltar se contrapõe a (A) Já vou embora ao afirmar o seu retorno mas sei que vou voltar. Ou seja, o Locutor (aquele que diz) ao se despedir do alocutário-Amor (representante da mulher amada) reafirma com convicção o seu retorno ao 'Brasil', cujo dizer projeta a esperança de continuar o relacionamento com a amada (Amor) ou o engajamento com a luta pela liberdade do país. O verso 2 da estrofe (I) (A) Amor não chora, (B) se eu volto é pra ficar/ pode ser parafraseado por: (A) Amor, não precisa chorar; (B) Se eu voltar pro Brasil é pra ficar.
No enunciado O meu caminho a ti não conduzia, o locutor-cantor se refere aos seus ideais de liberdade, ou metaforicamente aos do regime militar e o pronome ti leva esses ideais do alocutor para longe da nação, por isso: O meu caminho a ti (nação) não conduzia, porque o rei mal coroado não queria [...]. Na estrofe (II), o locutor-cantor argumenta a sua partida pelo fato de o rei mal coroado não queria o amor em seu reinado. Este verso expõe os sentimentos do locutor-cantor pela pátria amada Brasil, visto que está se despedindo por receio de ser pego pelos militares, conforme o verso: (a) Eu quis ficar aqui, mas não podia. O articulador argumentativo mas incide diretamente sobre o desejo do locutor em querer ficar no seu país, e se refere ao medo da repressão. Tem-se aqui também uma articulação por incidência que confirma e sustenta a posição do locutor pelo que diz, produzindo sentido específico no dizer, ao argumentar sua partida.
O verso Um rei mal coroado traz como memorável o passado de autoritarismo e intolerância. o locutor-cantor pede ao alocutário-Amor para não se entristecer, enunciado que projeta outros sentidos como a possibilidade da ditadura perder a força. Observamos que a letra da canção é eivada de comparação com o regime militar, isto é, rememora os atos do governo, os modos de governar, que convergem simbolicamente para a despedida do cantor. A música Canção da despedida completa o ciclo do artista Vandré, na luta por seus ideais de liberdade. O acontecimento da enunciação do texto musical, por si só configura o político na linguagem, o conflito e a contradição que se instala nos espaços de enunciação dessa música. Nesses espaços, ocorre a contradição em que alguns podem dizer coisas e outros obedecê-las, de um lado o governo representando o poder dizer e de outro a afirmação de pertencimento não só da classe artística como do povo com o direito a dizer e lutar por seus ideais. As músicas enunciadas pelo locutor interpretam a realidade brasileira, projetando sentidos de um novo porvir, no entanto, como os sentidos estão em movimento, eles podem ser outros.
Em 16 de julho de 1973, Vandré retornara ao Brasil. Ficara incomunicável nos quartéis do exército. Ao sair, disse que sua canção teria sido injustamente apropriada por grupos políticos e que dali para a frente só faria canções de "amor e paz". O artista Geraldo Vandré "morreu" ao voltar do exílio, restando apenas o advogado Geraldo Pedrosa de Araújo Dias. A ponto de que, quando Elba Ramalho foi gravar a "Canção da Despedida", após sua liberação pela censura no fim da década de 1970, Vandré não quis autorizar a sua execução, só o fazendo quando seu nome foi retirado dos créditos. Parece que 1968 era realmente uma despedida. Geraldo Vandré nunca mais retornou… Ele jamais gravara esta canção. Nas palavras de Geraldo Azevedo: "Minha conversa com Vandré foi difícil; ele não queria que a música não fosse gravada. Resolvi que seria. Elba registrou-a em um belo disco, em 1980 (Só que, nos créditos, apareceram como autores Geraldo Azevedo e Geraldo – sem o sobrenome)". Em 1985, Geraldo Azevedo colocou a autoria completa, pois soube que Geraldo Vandré se incomodara por não ter seu nome registrado integralmente.
Referência:
SILVEIRA, Dalva. Geraldo Vandré - A vida não se resume em festivais. 2. ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.



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