A QUESTÃO POLÍTICA DO TRABALHO PEDAGÓGICO: POR QUE A UNIVERSALIZAÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA DE QUALIDADE DEVE SER A NOSSA CAUSA?

Por ILDEU MOREIRA COELHO
Um trabalho pedagógico que não conduza a uma organização mais efetiva da sociedade civil, em especial das classes subalternas, já comprometeu boa parte de seu sentido educativo e eficácia. A criação e o fortalecimento das associações de professores, de funcionários, dos movimentos estudantis e dos sindicatos são fundamentais, não apenas para uma transformação da sociedade, mas da própria escola. Aliás, a educação que se processa no enfrentamento, na luta que se trava nessas associações, tem um sentido e uma eficácia geralmente bem maior do que a que se processa na escola propriamente dita. É aí, muitas vezes, que os indivíduos adquirem uma compreensão mais lúcida e profunda do processo histórico, das possibilidades e limites de sua prática, do sentido de sua atividade, enfim, o saber realmente transformador porque brotado na prática coletiva.
Se os problemas que aparecem na educação e na escola não são propriamente problemas da educação ou da escola, mas uma manifestação, no nível educacional, dos problemas sociais, políticos e econômicos, a sua possível solução também não virá dos técnicos em educação, nem depende da burocracia do MEC e das Secretarias estaduais e municipais de educação. Não tenhamos ilusões: esperar e aceitar passivamente as soluções oriundas da burocracia do Estado é aliar-se de fato aos beneficiados pela inércia do status quo.
Apesar de toda a crítica que podemos endereçar à escola, não se trata de destruí-la, nem de subestimar ou negar por completo seu poder e influência. Numa sociedade de classe, ela é elitista, reprodutora da divisão social, inculcadora da visão de mundo da classe dominante e, consequentemente, mantenedora da atual estrutura de poder. Entretanto, não podemos dispensar a sua contribuição como instrumento de participação cultural e sociopolítica. Também em relação à escola parece verdadeiro o adágio popular: ‘ruim com ela, pior sem ela’. O que talvez esteja faltando é um trabalho pedagógico que explore a contradição social, presente também na escola, na sala de aula. Acima de tudo é preciso ampliar as oportunidades reais de escolarização, especialmente para os que dela são sistematicamente excluídos. Embora reconhecendo que a extensão da escolarização fundamental a todas as crianças implica um reforço do processo de inculcação ideológica e de reprodução social, é preciso lutar por ela, sob pena de se legitimar a exclusão das classes oprimidas da escola. Não podemos permitir que apenas as classes alta e média tenham acesso à escola. É necessário ainda não se contentar com a ampliação das vagas e criação de novas escolas, mas ajudar os setores oprimidos a se organizarem como classe, para que tenham condições de exigir do Estado uma escola de boa qualidade e de tempo integral para seus filhos, necessária para a superação de suas dificuldades na aprendizagem, originárias de sua situação de classe.
Em nossa sociedade, qualquer defesa de processo de desescolarização ou de não-expansão da rede de ensino (mesmo quando ‘bem-intencionada) beneficia apenas aos que já foram escolarizados e aos que sempre tiveram garantido um ensino de boa qualidade. Convém lembrar ainda esta verdade bastante conhecida, mas muitas vezes esquecida: a escola não é a fonte da alienação, da exploração e da dominação de classe, de modo que fazer dela a responsável por todas as mazelas da sociedade é uma forma de justificar, de legitimar a estrutura social. Uma suposta destruição da escola não acabará, de modo algum, com a alienação e a dominação. Essa, aliás, é a função da ideologia: desviar a discussão do núcleo para a periferia, sempre à procura de um "bode expiatório" para os problemas originários da estrutura da sociedade.
Uma das maiores contribuições que a escola pode dar à classe operária não é tanto "conscientizá-la", como se ela não conhecesse a verdade libertadora por estar impregnada da ideologia, sendo nossa "missão" arrancá-la do plano da realidade imediata para elevá-la a seus reais interesses de classe. Esta concepção iluminista e autoritária, fundada na dicotomia saber/ignorância, consciência/inconsciência, supõe que a consciência crítica possa ser dada ou adquirida, possa vir de fora, esquecendo-se que ela se conquista no trabalho (transformação do real) e na luta (política) e que a ideologia encontra-se internalizada também no educador. As suas atitudes, em geral, traem seus compromissos com o autoritarismo, com a ideologia, numa prova evidente de que o conhecimento da dominação ideológica não imuniza ninguém. Numa palavra, a consciência crítica não pode ser doada por algum iluminado, mas também não surge espontaneamente. É através da luta e do trabalho coletivo que educadores e educandos criam condições para o seu aparecimento.
A grande contribuição da escola ao trabalhador é ensinar de fato a expressão oral, a leitura, a escrita e as operações fundamentais da aritmética a seus filhos. Se assim o fizer, estará contribuindo para sua libertação, pois o desconhecimento de tais técnicas coloca o operário numa posição extremamente desigual frente aos que o exploram, e o operário sabe muito bem disto. É preciso, além disso, usar a escola para dar ao trabalhador os conhecimentos técnico-científicos necessários ao controle técnico e social do processo de produção, dar-lhe os instrumentos para que possa não só elaborar, mas explicitar seu saber, liberar sua consciência de classe e defender seus interesses específicos, assim como propiciar-lhe as condições para uma maior participação sociopolítica e uma compreensão mais profunda da cultura que é coletivamente produzida por toda a sociedade. Somente assim a educação pode de fato tornar-se um instrumento de luta política também para as classes subalternas, assim como esta luta é um instrumento de educação do povo pois "toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica" (Antônio Gramsci).
Contra uma escola que a rigor nem alfabetiza os filhos dos trabalhadores é preciso criar uma escola que realmente os ensine. Para tanto, os docentes não podem, de forma alguma, abdicar de sua função primeira que é ensinar a todos os alunos, especialmente os que devido a sua situação de classe têm mais dificuldades na aprendizagem. Esta não se dá espontaneamente, como um lazer, mas exige disciplina, esforço, persistência; numa palavra, supõe trabalho. É profundamente ingênua (e perigosa!) essa ideia de que o professor deve facilitar a aprendizagem ao máximo, fazendo dela uma diversão, uma brincadeira (e aqui entra toda a parafernália da tecnologia da educação, dos recursos audiovisuais), na qual o importante é apenas "aprender a aprender". Ora, ninguém aprende a aprender sem um conteúdo, uma matéria-prima a ser transformada pela reflexão, isto é, sem um trabalho que produza a compreensão da realidade. A vulgarização da ideia de que não é o professor que ensina, mas o aluno que aprende, tem conduzido muitos educadores a uma irresponsabilidade, encoberto por uma falsa defesa da liberdade e da criatividade do indivíduo e da igualdade entre professores e alunos.
Referência:
COELHO, Ildeu Moreira. A questão política do trabalho pedagógico. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.). O educador: vida e morte. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.



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