OS JESUÍTAS, O RATIO STUDIORUM E OS PRIMÓRDIOS DA ORGANIZAÇÃO DO ENSINO E DA PEDAGOGIA NO BRASIL
(Como apareceu no Brasil o modelo tradicional de ensino que até os dias atuais é tão debatido por pesquisadores na área de Educação e professores?)
Por DERMEVAL SAVIANI
(1) A Companhia de Jesus e a Educação Colonial:
Os jesuítas vieram ao Brasil Colônia em consequência de determinação do rei de Portugal, sendo apoiados tanto pela Coroa portuguesa como pelas autoridades da colônia. Durante os dois primeiros séculos da colonização exerceram virtualmente o monopólio da educação, estendendo sua ação praticamente ao longo de todo o território conquistado pelos portugueses na América Meridional, o que fez com o ensino por eles organizado viesse a ser considerado como um sistema pelos analistas da história da educação brasileira do período colonial. Entre 1549 e 1570, os jesuítas esboçariam um sistema educacional que se consolidaria entre 1570 e 1759 sob a égide do Ratio Studiorum. A hegemonia dos jesuítas sobre o sistema de ensino do período colonial só seria encerrada quando Marquês de Pombal decidiu em 1759 pela expulsão deles do Brasil.
(2) O plano redízima e o financiamento público da educação jesuítica no Brasil Colônia:
Em 1564, a Coroa portuguesa adotou o plano redízima, pelo qual dez por cento de todos os impostos arrecadados da colônia brasileira passaram a ser destinados à manutenção dos colégios jesuíticos. A partir de então, as condições materiais para o estabelecimento e a expansão dos colégios jesuíticos tornaram-se muito favoráveis. Essas instituições multiplicaram-se rapidamente, chegando a um total de 728 casas de ensino em 1750, nove anos antes da expulsão dos jesuítas do Brasil e dos demais domínios portugueses, e 23 anos antes da supressão da Companhia de Jesus pelo papa Clemente XIV.
(3) Os jesuítas, o Ratio Studiorum, o modus parisiensis e as origens da organização escolar moderna:
Ainda que a fundação de colégios para estudantes não pertencentes à Companhia de Jesus não estivesse inicialmente prevista por Inácio de Loyola, já na década de 1540 essas instituições começaram a surgir. Após os pioneiros Colégios de Messina (1548) e Palermo (1549), foi fundado, em 1551, o Colégio Romano, que se tornou referência para toda a Ordem. A orientação pedagógica seguida foi o denominado modus parisiensis, que viria a constituir as bases da organização do ensino do Ratio Studiorum, um plano que foi enviado de Roma para as instituições que iam sendo fundadas nos diversos países visando a uniformizar a organização e o funcionamento dos colégios jesuítas.
O modus parisiensis tem esse nome porque se refere ao método adotado na capital da França, tendo se tornado a marca distintiva da Universidade de Paris. A data de referência é 1509, quando o Colégio de Mantaigu, de Paris, introduziu a divisão dos alunos em classes. O modus parisiensis de ensinar comportava, como aspectos básicos, a distribuição dos alunos em classes, realização, pelos estudantes, de exercícios escolares e mecanismos de incentivo ao trabalho escolar. A organização das classes dava-se pela reunião de alunos aproximadamente da mesma idade e com o mesmo nível de instrução aos quais se ministrava um programa previamente fixado composto por um conjunto de conhecimentos proporcionais ao nível dos alunos, sendo cada classe regida por um professor. Os exercícios escolares tinham como objetivo mobilizar, no processo de aprendizagem, as faculdades do aluno. Baseando-se na escolástica, o modus parisiensis tinha como pilares a lectio, isto é, a preleção dos assuntos que deviam ser estudados, o que podia ser feito literalmente por meio da leitura; a disputatio, que se destinava ao exame das questiones suscitadas pela lectio; e as repetitiones, nas quais os alunos, geralmente em pequenos grupos, repetiam as lições explanadas pelo professor diante dele ou de um aluno mais adiantado. Os mecanismos de incentivo ao estudo implicavam castigos corporais e prêmios, louvores e condecorações, além da prática da denúncia ou delação.
O modus parisiensis contém o germe da organização do ensino que veio a constituir a escola moderna, que supõe edifícios específicos, classes homogêneas, a progressão dos níveis de escolarização constituindo as séries e os programas sequenciais ordenando conhecimentos ministrados por determinado professor. Tendo assimilado o modus parisiensis ao estudarem na Universidade de Paris, os jesuítas o adotaram desde o primeiro colégio fundado em Messina em 1548 e o consagraram no Ratio Studiorum, que regulou o funcionamento de todas as suas instituições educativas.
A primeira versão do Ratio Studiorum foi fruto de uma comissão instituída em 1584 pelo padre Cláudio Aquaviva, eleito geral da Companhia de Jesus em 1581. Dos trabalhos da comissão surgiu, em 1585, um texto que, submetido à apreciação de Aquaviva, foi editado em 1586 para uso interno e enviado para a apreciação e crítica das autoridades responsáveis pelos melhores colégios da Companhia. Todavia, tal documento apresentava problemas como os longos debates pedagógicos sem estabelecer regras definitivas a serem seguidas pelas instituições de ensino jesuíticas. Uma nova edição do Ratio, agora na forma de um código de regras, foi encaminhada em 1591 a todos os colégios para ser posta em prática em caráter experimental. Os resultados dessa experiência, prevista para durar três anos, deveriam ser remetidos a Roma. Isso feito, chegou-se à versão definitiva do Ratio publicada em 1599.
(4) O Ratio Studiorum e a organização do ensino nos colégios da Companhia de Jesus durante o Brasil Colônia:
O Ratio Studiorum era um plano de ensino de caráter universalista e elitista. Universalista porque se tratava de um plano adotado indistintamente por todos os jesuítas, qualquer que fosse o lugar onde estivessem. Elitista porque acabou destinando-se aos filhos dos colonos e excluindo os indígenas, com o que os colégios jesuítas se converteram no instrumento de formação da elite colonial do Brasil.
O plano foi constituído por um conjunto de regras cobrindo todas as atividades dos agentes diretamente ligados ao ensino. Começava pelas regras do provincial, passava pelas do reitor, do prefeito de estudos, dos professores de modo geral e de cada matéria de ensino, chegava às regras da prova escrita, da distribuição de prêmios, do bedel, dos alunos e concluía com as regras das diversas academias. O Ratio previa a figura do prefeito geral de estudos como assistente do reitor para auxiliá-lo na boa ordenação dos estudos, a quem os professores e todos os alunos deveriam obedecer. Portanto, além do reitor, a quem cabe a direção geral dos estudos, prevê-se a figura do prefeito de estudos, cujas funções são reguladas por trinta regras. A regra n.º 5 determina que ao prefeito incumbe lembrar aos professores que devem explicar toda a matéria de modo que esgotem, a cada ano, toda a programação que lhes foi atribuída. A regra n.º 17 estipula que, 'de quando em quando, ao menos uma vez por mês, o prefeito deve assistir às aulas dos professores; deve ler também, por vezes, os apontamentos dos alunos. Se observar ou ouvir de outrem alguma coisa que mereça advertência, uma vez averiguada, chame a atenção do professor com delicadeza e afabilidade, e, se for mister, leve tudo ao conhecimento do P. Reitor'. Explicita-se, pois, no Ratio Studiorum, a ideia de supervisão educacional. Ou seja, a função supervisora é destacada (abstraída) das demais funções educativas e representada na mente como uma tarefa específica para a qual, em consequência, é destinado um agente, também específico, distinto do reitor e dos professores, denominado prefeito de estudos. Esse destaque da função supervisora com a explicitação da ideia de supervisão educacional é indício da organicidade do plano pedagógico dos jesuítas, o que permite falar, ainda que de forma aproximada, que se tratava de um sistema educacional propriamente dito.
O Ratio Studiorum começava com o curso de humanidades, denominado de 'estudos inferiores', correspondentes ao atual curso de nível médio. Seu currículo abrangia cinco classes ou disciplinas: retórica; humanidades; gramática superior; gramática média; e gramática inferior. A formação prosseguia com os cursos de filosofia e teologia, chamados de 'estudos superiores'. O currículo filosófico era previsto para a duração de três anos, com as seguintes classes ou disciplinas: 1.º ano: lógica e introdução às ciências; 2.º ano: cosmologia, psicologia, física e matemática; 3.º ano: psicologia, metafísica e filosofia moral. O currículo teológico tinha a duração de quatro anos, estudando-se teologia escolástica ao longo dos quatro anos; teologia moral durante dois anos; Sagrada Escritura também por dois anos; e língua hebraica durante um ano.
No Brasil os cursos de filosofia e teologia eram, na prática, limitados à formação dos padres catequistas. Portanto, o que de fato se organizou no período colonial foi o curso de humanidades ('estudos inferiores'), que tinha a duração de seis a sete anos e cujo conteúdo era gramática (quatro a cinco anos); esta, por sua vez, dividia-se em gramática inferior, média e superior, sendo que cada uma das duas primeiras podia subdividir-se em duas (inferior A e B e média A e B); a gramática era ensinada com o objetivo de assegurar expressão clara e precisa. A dialética, chamadano Ratio de humanidades (uma série), destinava-se a assegurar expressão rica e elegante. E a retórica (uma série) buscava garantir uma expressão poderosa e convincente. No conteúdo trabalhado nesses cursos o latim e o grego constituíam as disciplinas dominantes. A elas subordinavam-se a língua vernácula, a história e geografia, ensinadas na leitura, versão e comentários dos autores clássicos.
Os colégios jesuítas iniciaram uma divisão do trabalho didático, daí resultando a criação de espaços especializados para o ensino, materializados nas salas de aula; maior desenvolvimento da seriação dos estudos; maior diferenciação entre as áreas do conhecimento; e o crescente número de professores especializados por área do saber. Pode-se identificar na organização do ensino jesuítico 'um germe importante da escola moderna'.
As ideias pedagógicas expressas no Ratio Studiorum correspondem ao que passou a ser conhecido na modernidade como pedagogia tradicional. Essa concepção pedagógica caracteriza-se por uma visão essencialista de homem, isto é, o homem é concebido como constituído por uma essência universal e imutável. À educação cumpre moldar a existência particular e real de cada educando à essência universal e ideal que o define enquanto ser humano.
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