INDIVÍDUO E SOCIEDADE NOS PROCESSOS EDUCACIONAIS: ACERCA DAS CONTRIBUIÇÕES DE ÉMILE DURKHEIM PARA UMA SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO
Por Carlos Otávio Fiúza Moreira (Pesquisador e Professor - FIOCRUZ)
(1) Introdução
Segundo Émile Durkheim na obra "Educação e Sociologia", "cada sociedade, considerada em momento determinado de seu desenvolvimento, possui um sistema de educação que se impõe aos indivíduos, de modo geralmente irresistível. É uma ilusão acreditar que podemos educar nossos filhos como queremos. Há costumes com relação aos quais somos obrigados a nos conformar; se os desrespeitamos, muito gravemente, eles se vingarão em nossos filhos. Estes, uma vez adultos, não estarão em estado de viver no meio de seus contemporâneos, com os quais não encontrarão harmonia" (p. 36). Ademais, 'para encontrar um tipo de educação absolutamente homogêneo e igualitário, seria preciso remontar até as sociedades pré-históricas, no seio das quais não existisse nenhuma diferenciação. Devemos compreender, porém, que tal espécie de sociedade não representa senão um momento imaginário na história da humanidade' (p. 39).
Um aspecto que podemos perceber no campo educacional é uma certa oscilação nos estudos que tratam das relações entre indivíduo e sociedade nas diversas tradições, tendências ou escolas arroladas nos manuais de história da educação. Quando se fala em socialização, pensa-se justamente na questão posta por Émile Durkheim (1858-1917), que foi na Sociologia um dos primeiros a apontar para as relações fundamentais entre sociedade e indivíduo nos processos educacionais.
(2) Educação e socialização
No que diz respeito ao pensamento pedagógico, a ausência de referências aos efeitos sociais da educação seria mais uma exceção do que a regra. Algo distinto e bem mais recente na história do pensamento pedagógico é a análise dos fenômenos educacionais, tendo como referência o contexto e a estrutura social em que eles se desenvolvem. É a partir dessa perspectiva que se estabelece uma relação explícita entre a sociedade e a educação, tendo a Sociologia da Educação se tornado o locus próprio dessa discussão.
Em Educação e Sociologia (obra póstuma de 1922), Durkheim criticou a perspectiva individualizante dos pedagogos de sua época, e interpretou as disposições humanas como algo estruturado a partir das mediações sociais. Ele deu ênfase à educação enquanto processo de socialização sistemática de uma geração por outra. A finalidade básica da educação seria estruturar o social no indivíduo. Nessa perspectiva parecia sobrar pouco para as questões do indivíduo. Contudo, tal interpretação dos fenômenos educacionais marcava de forma clara as relações entre educação escolar e sociedade. Durkheim também esteve atento aos intensos processos de diferenciação e especialização por que estavam passando as sociedades europeias modernas. Ele apostou, porém, na possibilidade de a educação escolar ser compreendida como algo mais do que os sistemas especializados, podendo funcionar como uma base comum, a despeito das diferenças técnicas e profissionais: "Não há povo em que não exista um certo número de ideias, de sentimentos e de práticas que a educação deve inculcar a todas as crianças indistintamente, seja qual for a categoria social a que pertençam" (p. 39). Estas palavras cheias de esperança e generosidade, quase um imperativo kamtiano, soam estranhas no contexto atual, tomado pelo relativismo de origem epistemológica, étnica, política e religiosa.
Foi a partir de Durkheim e Max Weber (1864-1920) que se desenvolveram métodos próprios de análise, com que foram definidas não apenas as linhas gerais da Sociologia, mas também algumas características específicas daquilo que viria a caracterizar a Sociologia da Educação. Durkheim ajudou a criar um saber específico, o que para a recepção pedagógica significa que se tinha aberto um caminho científico mais claro. O processo educativo pode ser compreendido como transmissão da vida social; ou seja, esse processo é de algum modo a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que se preparam para a vida social, e desenvolve nos educandos certos estados morais, intelectuais e físicos exigidos pela sociedade como um todo e pelo meio específico a que o educando se destine (Dukheim, 1978, p. 41).
É preciso lembrar ainda da crença liberal em que o talento pessoal - devidamente respeitado e desenvolvido na escola - poderia determinar a posição social dos educandos, e a ideia de que é possível a reconstrução social por meio da ação dos indivíduos. Tais crenças não são incompatíveis com o reconhecimento da educação como processo de socialização.
(3) Indivíduo e sociedade: uma antinomia fundamental do pensamento pedagógico?
A questão da oposição entre a expansão do indivíduo e a sua subordinação à vida política e moral como a antinomia fundamental do pensamento pedagógico é algo que se repete em cada geração de educandos. Desde as primeiras reflexões da filosofia ocidental sobre a paideia, na Grécia Antiga, até o complexo conceito de habitus, atualizado e desenvolvido pela Sociologia da Educação, o problema da transmissão do patrimônio cultural acumulado se faz presente nas discussões pedagógicas. Se a noção de sujeito é moderna e dificilmente pode ser encontrada antes de construções como as de Descartes e de Shakespeare, a questão da relação entre a sociedade e cada um de seus componentes quiçá tenha sido posta na primeira 'aula' da vida humana. O que tentava transmitir aos seus 'alunos' o primeiro 'mestre' da humanidade? Ao intuir a necessidade de compartilhar alguns saberes, esse professor original não começava a interferir no curso do desenvolvimento individual com algo que pertencia a outros? Modelos de transmissão dos saberes constituídos socialmente, seja através de rituais religiosos, ou de sofisticados esquemas lógicos, não parecem ter algo em comum ao longo da história? E ao final de um processo educativo, o que temos como produto não é um indivíduo e um agente dotado de certos habitus?
O que continua a ser uma questão atual do campo da educação é aquilo que há de mais característico na prática ou arte de educar, a complexidade, o equilíbrio móvel e instável das forças que nela interagem. Saberes sobre o indivíduo e saberes sobre a sociedade disputam entre si a compreensão dos fenômenos educacionais: a perspectiva individualista, a abordagem psicológica, a ênfase na subjetividade de quem educa e de quem é educado, ou seja, a ideia de um ensino centrado no aluno, sendo este percebido como um ser psicológico quase sem relações importantes com o meio social, ou o estudante enxergado como um indivíduo em desenvolvimento inserido na sociedade. A hegemonia de uma dessas perspectivas sobre questões educacionais parece sempre discutível. Tenho isso como hipótese, que serve aqui de conclusão deste ensaio.
Referências:
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1978.
MOREIRA, Carlos Otávio Fiúza. Educação: entre o indivíduo e a sociedade. In: BRANDÃO, Zaia; MENDONÇA, Ana Waleska (Org.). Uma tradição esquecida: por que não lemos Anísio Teixeira? 2. ed. Rio de Janeiro: Forma & Ação, 2008, p. 189-203.
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