"ETERNOS NO MUNDO SÓ O POVO E A MEMÓRIA DOS SEUS HERÓIS E POETAS, POIS É CURTO O TEMPO DOS TIRANOS, É CURTA A NOITE DA ESCRAVIDÃO"
Por JORGE AMADO
"Certa vez – era noite de chuva e vento – íamos pela rua pobre de uma cidade distante. Íamos curvados, teu corpo bem junto ao meu. Do escuro de uma sala, através da madeira das janelas, o rumor de vozes de homens em uma prática amarga chegava até nós. E, de súbito, na sala alguém disse um nome. E desapareceu a amargura e o desespero, ficou só a esperança. Também sobre nós, sobre a chuva e o vento, brilhou na rua pobre uma estrela. Houve uma alegria de primavera na noite chuvosa de inverno. Outra vez nós vimos os homens que iam presos. Sorriam, não eram ladrões, nem assassinos, não exploravam mulheres, nem vendiam tóxicos. Os presos sorriam, as mulheres que os viam passar choravam, os homens apertavam os punhos. Alguém murmurou um nome, o nome de outro preso. E a esperança brilhou no sorriso dos que iam presos, nas lágrimas das mulheres, nos punhos cerrados dos que ficavam.
Te contarei a história do Herói, amiga, e então não terás jamais em teu coração um único momento de desânimo. Como naquelas noites em que o seu nome, balbuciado por vezes a medo, afastava a amargura e o terror, agora eu falarei dele pra que tu e o povo do cais que me ouve saibam que podem confiar e que a noite não é eterna. Eterna no mundo, amiga, só o povo e a memória dos seus Heróis e dos seus Poetas. É curto o tempo dos tiranos, é curta a noite da escravidão. E tão bela é a manhã da liberdade que vale a pena morrer por ela, dar a vida pela certeza de que ela vem, que chegará para os homens. Mas, ah!, amiga, morrer é fácil, seja por uma mulher, seja pela liberdade! Difícil é viver uma vida de sofrimento e de luta, sem desanimar e sem desistir, sem se vender, sem se curvar. Mais que a morte, a liberdade pede a vida de cada um, todos os seus momentos, todas as suas forças.
Nunca é caro, amiga, o preço da liberdade, mesmo quando é mais que a morte, é a vida no exilo ou na prisão. Por maior que possa ser a sujeira sob a ditadura, a dignidade de Prestes, por si só, é suficiente para lançar uma luz sobre esse charco, uma luz de esperança. Esse rapaz lhes mostrava todos os dias que ninguém pode viver somente para si existindo os homens lá fora, estrangulados pela fome de pão de liberdade e de cultura. Aprendia para que todos aprendessem. Com Luís Carlos Prestes, amiga, toda uma geração de cadetes estudou em função do povo.
Esse povo do Brasil, amiga, é um povo heroico. Eu queria ser dono dos adjetivos do mundo para te falar sobre ele. Queria saber as palavras mais doces, as mais ternas e as mais humanas e as mais heroicas para te dizer da coragem e da confiança que latejam no coração da gente brasileira. Pisado e acorrentado, ignorado e desprezado, de mãos atadas, de boca cerrada, comendo o indispensável para não morrer, traído e insultado, o povo do Brasil não desespera e não se tranca numa indiferença suicida. Luta, clama, grita, brada e cria do seu sangue os seus líderes e os seus heróis. Heroico povo esse, resistente e digno, esperança sem fim nas suas canções, esperança nos seus gritos, esperança nos dias de desgraça que nada mais são que a véspera do dia da liberdade. Tremem os donos do dinheiro e do poder porque nunca serão donos da vontade desse povo, nunca conquistarão seu libertário coração rebelde. Nunca esse povo se desesperou nem nos momentos mais angustiosos. Clamou sempre, numa luta de todos os minutos para rebentar as cadeias que prendem os seus pulsos. Gritou com Tiradentes e com os poetas mineiros na aurora da liberdade, nos dias da Inconfidência. Na voz de Alvarenga e Gonzaga, no martírio e na nobreza do alferes esquartejado. Gritou nos dias da Independência, a voz enorme de José Bonifácio. Gritou com Zumbi, nas selvas dos palmares, gritou com os negros nas selvas do Cubatão, gritou na Bahia na revolta do alufá Licutã na frente dos negros malês. Gritou nas ruas do Recife, gritou pela boca de Frei Caneca sorridente diante do pelotão de fuzilamento. Pela boca dos gaúchos na revolta do Sul. Com a maior das suas vozes, clamor de beleza na voz de Castro Alves, construindo liberdade. E seu clamor continuava, subterrâneo, insistente, cada vez mais poderoso. Heroico povo esse, amiga! No seu sofrimento gerava dolorosa mas tenazmente o seu Herói, sua voz e sua espada. Humanização desses gritos, o povo concebia Luís Carlos Prestes. Nascido do sangue de Tiradentes e da voz de Castro Alves. Do coração do povo. Sua voz e sua espada.
Esse país inexplorado de Mato Grosso e Goiás, terras que nunca acabam, fazendas como nações, tudo primário, bárbaro e desconhecido. Até aqui não chegaram as leis, amiga, nem mesmo essas leis já agora tão deficientes para as capitais e os estados mais civilizados do litoral. Aqui, os senhores feudais criaram as suas leis próprias, as mais bárbaras, as mais brutais. Nestas terras a abolição nunca se deu, a gente continua escrava de uns poucos homens donos da terra. Em cada uma destas fazendas, negra, poderias pôr uma nação da Europa e sobraria terra. Aqui são os tempos da Colônia ainda, amiga. Esses latifúndios da Mate Laranjeira, esses latifúndios dos senhores feudais, os homens como os mais miseráveis escravos, sem nenhum direito, sem uma lei que os proteja, são uma visão dantesca.
Deram aos soldados do povo todos os nomes: Coluna da Morte, Coluna Fênix, Coluna Invicta, Coluna Prestes. E dizendo Coluna Prestes o povo dizia Coluna da Esperança. Na sua frente o Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes, suas barbas crescidas, seus olhos ardentes, sua face tranquila, seu sorriso triste mas confiante. Cavaleiro do povo.
Luís Carlos Prestes vencera o impaludismo, o sol, as florestas e os rios. Vencia os cangaceiros também. Seu nome, como uma chicotada nas faces dos inimigos do povo, ressoava sob os céus do país. Nos lares pobres, nas choças, nos mocambos, nas senzalas do país, as mulheres de faces cavadas, as crianças doentes, os homens escravizados imploravam aos céus, aos seus deuses misturados, brancos, índios, negros, deuses mesclados de religiões e superstições, imploravam pela vitória do Cavaleiro da Esperança. Também da caatinga sobem preces para os céus, amiga.
O que tínhamos em vista – disse Prestes se referindo à Coluna – principalmente, era despertar as populações do interior, sacudindo-as da apatia em que viviam mergulhadas, indiferentes à sorte do país, desesperançadas de qualquer remédio para os seus males e sofrimentos. Isso ele o havia conseguido realizar. Essa foi uma face da Coluna, um dos seus trabalhos. Havia a outra face, os líderes do povo aprendendo os sofrimentos do povo, vendo o superficial daquelas plataformas revolucionárias que haviam acompanhado os movimentos de 1922 e 1924.
Ao fazer o retrato da Coluna, vendo-a desde o exílio, Prestes fala sobre esta outra face e marca a evolução rápida que estava tendo o tenentismo: não há solução possível para os problemas brasileiros dentro dos quadros legais vigentes. A questão não é de homens, mas é de fatos, isto é, de sistema e de regime. Nenhum governo, mesmo animado das melhores intenções desse mundo, poderá, nos limites da legalidade normal, resolver os problemas nacionais em equação. A solução tem de vir de uma transformação radical em tudo, não apenas na superfície política, é preciso reorganizar o país sobre bases novas. É preciso criar novas bases econômicas e sociais de relações entre os homens que habitam e trabalham nesta grande terra. É preciso quebrar, resolutamente, as cadeias que oprimem o Brasil e impedem seu desenvolvimento ulterior, sua expansão fecunda e gloriosa.
Isso ele aprendera com a Coluna, durante a marcha. Não fora apenas a Coluna quem dera algo. Também o povo dera aos homens da grande marcha uma nova visão da vida e do Brasil. O povo acabara de criar o seu líder à sua feição, marcara-o com o fogo dos seus problemas. Nesse momento Prestes fala em retalhar os latifúndios. Prestes se levanta, depois da Coluna, contra o imperialismo, sua voz clama para todos os países da América Latina no sentido de se unirem contra o inimigo comum: o imperialismo. O líder do povo do Brasil começa a sua carreira de grande líder de toda a América. Porque viveu no interior da sua pátria os problemas semelhantes de todos os países latino-americanos.
A coluna, linha do coração traçada na mão do Brasil, como disse o poeta, amiga, revela o país para Luís Carlos Prestes, dá-lhe a responsabilidade de Herói de um povo. Nunca trairá a Coluna. Mesmo hoje, amiga, na prisão mais infecta, ele está continuando a Grande Marcha, os problemas na mão direita, na mão esquerda as soluções. Como naqueles distantes anos, o povo o espera. Mais que qualquer outra, sua voz vai concorrer para que terminem os dias de fome e de escravidão. Desta vez para sempre.
Prestes, ao aderir ao proletariado na sua revolução, sabe que todos os ódios dos donos da vida vão acirrar-se contra ele. Mas, quando aceita o marxismo como concepção de vida, quando encontra nele a resposta às suas perguntas, não tem um minuto de vacilação. É o mesmo general Luís Carlos Prestes que atravessava por caminhos que faziam os demais estremecer. Ali está a verdade, ele a acompanhará.
Nunca, em todo mundo, incluindo o futurismo de Marinetti no fáscio italiano, incluindo as teorias árias do nazismo alemão, nunca se escreveu tanta idiotice, tanta cretinice, em tão má literatura, como o fez o integralismo no Brasil. Foi um momento onde maior que o ridículo só era a desonestidade. Plínio Salgado, führer de opereta, messias de teatro barato, tinha o micróbio da má literatura. Tendo fracassado nos seus plágios de Oswald de Andrade, convencido que não nascera para copiar boa literatura, plagia nesses anos o que há de pior em letra de fôrma no mundo. É a literatura mais imbecil que imaginar se possa.
Getúlio apoiava-se em uma trilogia trágica: Rao, Filinto e Plínio Salgado. Latifúndio, imperialismo e fascismo. O programa de um Governo Popular Nacional Revolucionário era exatamente o de combate a estes inimigos do povo. Bando de torturadores, recrutados entre os criminosos mais eficientes. Dos chefes ao último tira. Dos que formaram o Tribunal de Segurança aos investigadores sem importância. Nomes que dá nojo dizer. Desonra da espécie humana, indignidade vivendo, bestas vestidas de homens, excrescência de podridões, hálito fétido de latrinas. Lama, sujeira, lixo, miséria, chagas podres, carne leprosa, pus de feridas, vômito e escarro, podridão humana, excremento de prostíbulos! Mais vale, amiga, encher a boca de sujeira que pronunciar o nome desses vermes com corações de feras, soltos sobre o Brasil, presença envilecendo a Pátria. Os assassinos! Frios assassinos, covardes assassinos, bestiais e degenerados! Qualquer palavra suja, qualquer imundo substantivo, é doce palavra de poema lírico ao lado desses nomes podres. Leprosos por dentro, a lepra no coração infame.
Torturavam Prestes, era seu ódio maior, porque era seu medo maior. E torturavam Olga, a esposa de Luís, que trazia no ventre uma criança filha daquele amor. Descobriram então o maravilhoso presente, o regalo ideal, para mandar ao grande tirano Adolf. E enviaram-lhe Olga com o filho no ventre. Com certeza o grande tirano ficaria feliz. Um ser humano que levava outro dentro de si para que ele os torturasse à vontade. Assim fazes, amiga, os tiranos quando querem imitar os homens.
No cargueiro que reproduzia as viagens dantescas dos navios negreiros, Olga dormia sobre a sujeira dos vômitos, sentia dentro de si aquela vida bulindo, fruto do seu amor. No Brasil, nas mãos mesquinhas dos inimigos do povo, nas mãos desses homens que odeiam tudo que representa dignidade e beleza, ficava seu marido que era a própria dignidade e a própria beleza da vida. E ela, com um filho no ventre, ia para as mãos de um louco feroz que desgraçava sua pátria de nascimento. Um mês no porão infecto, sem ar, sem luz, como um fardo jogado sobre as sujeiras. Ouvindo os hinos hitleristas, as saudações odiosas, viajando para o próprio inferno.
Diante do que os integralistas saem à rua, armados de punhais, ornados com a cruz suástica, com fuzis alemães, Newton Cavalcanti é enviado para fechar as câmaras, e Vargas dá, tranquilamente, o golpe de Estado. A 10 de novembro é comunicado ao país e ao Povo que já não existe a república do Brasil, agora existe o Estado Novo corporativo, com uma constituição copiada da italiana e da portuguesa, sob os ardentes aplausos e votos de felicidade da Alemanha e da Itália.
Vão começar, amiga, os anos ainda mais desgraçados do Estado Novo. O Estado Novo se caracteriza pelo desejo de arrancar do brasileiro todas as suas qualidades de caráter. É o regime do suborno, da absoluta e cínica despreocupação pelos interesses do país e do povo, é o regime da servilidade, da bajulação e da torpeza no seu máximo. Tirania na América. Degradante e criminosa.
Lá está ele, amiga, na prisão. Sobre as grades de ferro dos buracos por onde penetra um pouco de ar, as telas de arame impedem que ele veja a paisagem bela da cidade. Mas nada impede que seus olhos profundos vejam o desenrolar da vida, sintam e analisem e julguem os acontecimentos, que vejam o caminho a seguir.
Quando sua voz fala, amiga, é o gênio do povo que fala por ela, condutor da sua gente, general do Brasil, Herói da América!
Lá está ele na prisão imunda. Não lhe permitem falar nem com seu advogado, não lhe permitem escrever os livros que deseja escrever, cortam sua correspondência com a família, castigam-no de todas as maneiras, desde que começou a guerra ele não sabe da sua esposa, processam-no e julgam-no à sua revelia, dão-lhe uma comida insuficiente e contraindicada para as suas enfermidades, puseram-no nas proximidades de tuberculosos para ver se o contagiavam, puseram ao seu lado o companheiro que enlouqueceu com as torturas para ver se assim o enlouqueciam também. Fizeram-lhe tudo que se pode fazer a um ser humano, a um animal para experiências de laboratórios de cientistas degenerados, tratam-no como a um cão hidrófobo. Lançaram sobre ele lama e lodo, pensando que assim afastavam dele o povo, que assim o tornariam impotente e inofensivo. Não tiveram coragem de matá-lo, temem o povo que se levantará para vingar a morte do seu Herói. Mas assassinam-no lentamente, com uma crueldade inaudita. Mantêm sua velha mãe numa tortura selvagem, mantêm ele sob regime inumano.
Não conseguiram dobrá-lo, não conseguiram afastar o povo dele. Todos os sofrimentos não diminuíram sua profunda visão do mundo e dos homens. Todas as misérias não diminuíram o amor que o povo lhe tem, a confiança que deposita nele, a certeza, que o verá novamente partir pelos campos do Brasil na batalha definitiva da liberdade".