PAULO FREIRE E A CONDIÇÃO DAS MULHERES

(Para uma compreensão histórica e reflexão crítica sobre o significado do feminismo e da luta pela igualdade de gênero)

Por Baldoíno Antônio Andreola (Pós-doutor em Educação pela UFRGS)
Em sua "Terceira Carta Pedagógica", deixada inacabada sobre sua mesa, Freire escreveu: "desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros". Em Pedagogia da Autonomia escreveu: "a ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe".
Em Porto Alegre, numa fala aos docentes da UFRGS, em 1988, Freire iniciou assim: "Minhas prezadas professoras!" Fez uma pausa, e continuou: "Por que deveria iniciar dizendo: meus prezados professores, se a grande maioria, nesta sala, são professoras?"
No livro Pedagogia da Esperança ele conta que usou outras vezes esta subversão da gramática como denúncia do machismo da linguagem, de que o acusava "um sem número de mulheres norte-americanas", nos anos 70. Se no início se justificava passou a levar a sério o "débito àquelas mulheres", e escrevia "a todas, uma a uma, [...] agradecendo a excelente ajuda".
Numa entrevista com Freire intitulada "Opressão, classe e gênero", Donaldo Macedo retoma as críticas das feministas: Alguns/algumas educadores/educadoras, particularmente as feministas norte-americanas, argumentam que seu trabalho tende a universalizar a opressão enquanto ignora as especificidades de posições diversas e contraditórias que caracterizam os grupos subordinados juntamente às linhas de cultura, etnia, linguagem, raça e gênero [...].
Aceitando as críticas como válidas, Freire explicita, porém, algumas ressalvas: "Sem evitar a questão de gênero, devo dizer que os leitores/as leitoras têm alguma responsabilidade em colocar meu trabalho inserido nesse contexto histórico e cultural; isto é, a pessoa lendo Pedagogia do Oprimido como se tivesse sido escrito ontem, de alguma forma descarta a historicidade do livro. O que eu acho absurdo é ler um livro como Pedagogia do Oprimido e criticá-lo porque o autor não tratou de todos os temas de opressão potencial de forma igualitária".
Moema L. Viezzer, num encontro nacional, em 1986, fez esta pergunta: "Paulo, como você vê a questão das relações de dominação e opressão entre homens e mulheres em nossa sociedade?" A resposta foi, "eu jamais teria escrito Pedagogia do Oprimido se, ao mesmo tempo, eu me permitisse oprimir minhas filhas, minha esposa e as mulheres com quem trabalho. As mulheres estão certas em organizar-se e dizer o que tem que ser mudado em relação às opressões que hoje sofrem. E nós, educadores, precisamos entendê-las, ouvi-las e acompanhar as mudanças que ocorrerão graças às suas iniciativas".
Márcia A. da Silva escreveu no Dicionário Paulo Freire o verbete Feminismo historicamente bem fundamentado. Mas cometeu omissão bibliográfica grave ao afirmar: "Inicialmente, podemos afirmar que Paulo Freire pouco dialogou com o movimento feminista", acrescentando que foi em Medo e Ousadia que Freire deixou nítido "o reconhecimento pela luta das mulheres". A 2ª edição do Dicionário Paulo Freire, no qual escreve data de 2010. Mas já em 2001 havia sido publicado Pedagogia dos Sonhos Possíveis, livro que traz, no diálogo de Macedo com Freire, as respostas exaustivas dele sobre o tema.
Em Medo e Ousadia, livro dialogado com I. Shor, são dedicadas, sim, várias páginas à questão da mulher. Shor relata que em suas aulas as mulheres falam menos que os homens, sendo até silenciadas por eles e diz que intervém, para garantir-lhes a palavra. Pergunta a Freire: "No Brasil o tema do sexismo e do racismo são problemas em sala de aula?" Freire responde: "São, sim. A sociedade brasileira é muito autoritária". E acrescenta que tanto o racismo quanto o machismo são fortes no Brasil. Mas observa que ao voltar ao Brasil encontrou uma novidade: a luta das mulheres [...] que começaram a lutar, começaram a protestar, começaram a rejeitar o fato de continuarem a ser objetos dominados pelo homem".
Sobre o silenciamento das mulheres, Freire disse que não o viu nas suas aulas ou em seminários, apesar de "nossa cultura machista". Ponderou que não cabe aos homens "libertar as mulheres", que a libertação deve ser conquista delas, cabendo aos homens contribuírem, numa "ação política" conjunta: [...] "contra o racismo, contra o sexismo, contra o capitalismo, e contra as estruturas desumanas de produção".
Para a leitura de um autor, além do contexto histórico, cabe considerar também suas experiências existenciais, como no caso de Freire, o segredo cruel que ele explicitou em Cartas `a Cristina. Ao falar da fome, resultado da crise de 1929, e da tristeza do pai, sentindo-se impotente para dar à família uma condição menos penosa, ele descreve as humilhações sofridas pela mãe: "Quando [...] minha mãe, dócil e timidamente, pedindo desculpas ao açougueiro por não haver pago a mínima quantidade de carne comprada na semana anterior, ao solicitar mais crédito para trezentos gramas a mais, prometia que pagaria as duas dívidas, na verdade ela não mentia nem tentava um golpe. Ela precisava de acreditar em que realmente pagaria. E precisava, de um lado, por uma razão muito concreta – a fome real da família; de outro, por uma questão ética – a ética de mulher de classe média cristã católica. E quando o açougueiro, zombeteiro, machista, a desrespeitava com seu discurso de mofa, suas palavras a pisoteavam, a destroçavam, a emudeciam. Tímida e esmagada, eu a vejo agora, neste momento mesmo, eu a vejo frágil, olhos marejando, deixando aquele açougue à procura de outro em que quase sempre se acrescentavam outras ofensas às já recebidas. [...]. O que me revoltava era o desrespeito de quem se achava em posição de poder a quem não o tinha. Era o tom humilhante, ofensivo, canalha, com que o açougueiro falava a minha mãe. A entonação de censura, de reprovação do discurso do açougueiro, que ele prolongava desnecessariamente e de forma que todos, no açougue, ouviam, me fazia um tal mal que, agora, preciso me esforçar para descrever a experiência".
Aquela experiência o marcou decisivamente contra qualquer desrespeito à mulher. O relacionamento com sua esposa Elza, falecida em 1986, e com sua nova esposa Ana Maria são exemplo disso. Quanto à Elza são inúmeras as referências em seus livros. Ele disse um dia a um de seus filhos que muitas pessoas lhe diziam ou escreviam que estavam gostando de seus livros, e acrescentou jocosamente: "daqui por diante, vou perguntar: 'Qual é o nome de minha esposa?' Se não souberem, é porque não leram, sendo que eu falo dela praticamente em todos os meus livros".
Quanto à valorização profissional da mulher, cabe citar o livro Professora sim, tia não: cartas a quem gosta de ensinar. Rosa M. Torres relata uma entrevista na qual Freire observou: "Quanto mais se reduz a profissionalização a uma amorosidade parental, tanto menos são as condições que terá a professora para lutar".
Frente às críticas à linguagem de Freire, ocorre-me citar Manfred Peters, exímio linguista belga. No livro A Pedagogia da Libertação em Paulo Freire participou com um texto intitulado "Aspectos semânticos e pragmáticos da pedagogia de Paulo Freire". Segundo Peters: "na visão freireana, a linguagem não pode ser dissociada do seu contexto social e político ou do seu papel criador de estratégias de ação. [...] para ele a linguagem real sempre envolve a práxis, e usar uma linguagem real significa mudar o mundo. [...] O significado de uma palavra, segundo ele, só pode existir em uma situação concreta [...]. A base dessa visão é uma teoria semântica específica, a qual define o significado como algo que não é inerente à palavra, possuindo apenas uma existência semântica potencial, que se torna real em um contexto específico". Ao falar do projeto Alfabetização e Conscientização no Quivu, realizado na Republica Democrática do Congo, Peters elenca uma série de provérbios, canções e histórias populares escancaradamente machistas, que, segundo ele, requerem um processo de "desmistificação", proposto por Freire, e por isso declara: "daí o esforço contínuo dos grupos populares [...] em desvelar a realidade e criar a utopia, no sentido freireano".
Peters está convencido de que a Pedagogia do Oprimido pode inspirar projetos de relevância internacional, na luta para a transformação de tradições culturais e de estruturas de poder marcadas por modalidades tremendamente opressivas da mulher.
Na Suíça, um movimento amplo de mulheres buscou na Pedagogia do Oprimido e na "visão política do IDAC" a inspiração para a luta, relatada no livro Vivendo e aprendendo: experiências do IDAC em educação popular, de autoria do grupo IDAC. No capítulo 3, intitulado "As Mulheres em Movimento", sobre a 1ª Assembleia lemos: "éramos quinhentas a perceber a mesma coisa e, para falar dessa 'coisa' que ninguém sabia muito bem o que era, nos dividimos em grupos. Esses grupos, que proliferaram em Genebra e na Suíça se constituíam e se desfaziam segundo os interesses das participantes".
Na pesquisa da realidade, para "escrever sua própria história", "cabia às estudantes da universidade o levantamento do que Freire chamaria o universo temático das habitantes do conjunto residencial". Nessa "reinvenção de identidade individual e coletiva", prolongando-se em ação política, o movimento visava um processo amplo de transformação social.
Um ano e meio antes de sua morte, no livro À Sombra desta Mangueira, Freire denuncia várias vezes todas as formas de discriminação, "[...] não importa se contra o negro, a mulher, o homossexual, o índio, o gordo, o velho". Ele proclama que "é um imperativo ético lutar contra a discriminação", e explicita: "discriminados porque negros, mulheres, homossexuais, trabalhadores, brasileiros, árabes, judeus, não importa por quê, temos o dever de lutar contra a discriminação. A discriminação nos ofende a todos porque fere a substantividade do ser”.
Ao subverter a gramática, como na sua fala na UFRGS, Freire queria chamar a atenção para o problema de uma cultura machista milenar, que não se reduz a detalhes gramaticais. Peters vai ao âmago do problema quando, ao "usar continuamente o gênero feminino" referindo-se às mulheres, com justiça: "Assim posso contribuir, em longo prazo, para a realização de mudanças da realidade cultural, social, econômica e política". Esta perspectiva de mudança a "longo prazo" condiz com a formulação de Paulo Freire, em Pedagogia da Esperança: "A recusa à ideologia machista, que implica necessariamente recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em favor de mudança do mundo."
Referência:
ANDREOLA, Baldoíno Antônio. Freire e a condição das mulheres. In: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antônio (Orgs.). Dicionário crítico de gênero. 2. ed. Dourados: Editora Universidade Federal da Grande Dourados, 2019, p. 294-298.



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