TRECHOS DO DIÁRIO DE UM PRACINHA BRASILEIRO PRESO EM UM CAMPO DE CONCENTRAÇÃO NAZISTA DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

REFLEXÃO E CRÍTICA: Como é possível em pleno século XXI elementos da cidade de Catanduva, interior de São Paulo, fazerem saudação nazista e postarem o vídeo em suas redes sociais com os seus respectivos nomes descaradamente somente para repetir o gesto deplorável de Elon Musk durante a posse de Donald Trump nos Estados Unidos? Este texto serve para que reflitamos e tomemos consciência do que foi o nazismo, inclusive para os combatentes brasileiros na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial! O nazismo não combina com o patriotismo que o Brasil precisa no presente, mas com o que a Humanidade já produziu de mais abjeto e asqueroso em sua História!

Por WALDEMAR CEZEROLI (Combatente da Força Expedicionária Brasileira preso pelos nazistas em um campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial)

Muitos pracinhas registraram por escrito sua experiência durante o conflito, contrariando a orientação do Ministério da Defesa da época, que proibiu os soldados de manterem diários. Alguns diários de pracinhas sobreviveram e foram publicados.
Morador da cidade paulista de Ribeirão Pires, que na época era um distrito de Santo André, Waldemar Cezeroli foi sorteado para o Exército em 1941. Segundo sua certidão funcional, ele era um soldado que se destacava por sua disciplina, força de vontade e resistência física durante os treinamentos.
O diário revela outro lado do pracinha: o de um jovem de 24 anos consumido pelas saudades da família, que abandonou sua pacata vida de funcionário dos Correios para empunhar uma metralhadora no front de guerra e que não teve coragem de contar para a mãe que havia sido convocado para lutar na Europa — preferiu dizer que estava no Norte do Brasil. Seu relato se inicia com o embarque no Rio de Janeiro, em 29 de junho de 1944, e tem periodicidade diária até 30 de outubro, logo antes de seu aprisionamento.
As agruras do cativeiro também foram registradas, mas de forma resumida, provavelmente após sua libertação. A última anotação do caderno é um poema datado de janeiro de 1946, seis meses após seu retorno ao Brasil.
O relato de Waldemar chegou ao ápice em 30 de outubro de 1944, data de sua última batalha antes de ser capturado, no Vale do Serchio, região da Toscana. Sob forte chuva, pracinhas brasileiros tentavam subir o morro de São Quirico em direção a uma base defensiva alemã. Surpreendidas com um contra-ataque, as tropas da Força Expedicionária Brasileira tiveram que bater em retirada, mas o grupo de Waldemar ficou cercado pelo inimigo. Eram 17 pracinhas abrigados em uma casa, contra 300 soldados alemães, no que seria considerado o primeiro revés sofrido pelo Brasil na Itália.
"30 de outubro: era aproximadamente 11h, e eu já estava com fome e sede insuportáveis. Subi para o andar superior e vi pela janela que o inimigo já tinha cercado a casa. (...) Enquanto tinha balas, atirei para matar. Quando terminaram meus 3 mil tiros de metralhadora, peguei meu fuzil e continuei atirando. Atirávamos a dois ou três metros de distância, dava para ver o ódio estampado no rosto do inimigo. (...) Vi perfeitamente uma granada entrar pela janela e cobri o rosto com o braço esperando a explosão. Senti uma pancada na cabeça e desacordei por alguns segundos. Depois, vi meu braço ferido e senti sangue escorrer pela perna esquerda. Quis andar, mas não pude. Olhei para o sargento e vi sangue no braço dele, que se contorcia de dor e estava com o braço direito quebrado. Ao meu lado estava o Hamilton deitado em uma poça de sangue. Um estilhaço havia-lhe cortado a veia".
No diário Waldemar contou que foi levado a um hospital, onde sofreu nas mãos de enfermeiros italianos: “Tiraram-me o estilhaço da perna e outro da cabeça, mas tudo sem anestesia; punham-me gaze na boca para sufocar os gritos”, escreveu.
Em 5 de dezembro, os cativos embarcaram em um trem de carga em direção à Alemanha, em vagões de aço lacrados, e passaram “três dias e três noites fechados como ratos. À meia-noite, de 8 de dezembro, tive a honra de desembarcar na Alemanha. Estávamos loucos de sede e, assim que descemos, começamos a comer neve. Entramos em forma e seguimos para o campo de concentração. Foi a pior impressão de minha vida ver aquele cercado de arame onde eu ia entrar, mas não sabia se sairia.”
À sua frente, estava o Stalag VII-A, o maior campo de prisioneiros de guerra da Alemanha nazista, na cidade de Moosburg, na Baviera. Planejado para 10 mil prisioneiros, tinha mais de 76 mil no momento de sua libertação pelo Exército americano, em 29 de abril de 1945 — outros 40 mil cativos eram mantidos nos arredores, realizando trabalhos forçados. “No outro dia, às 9h, vieram uns pães pretos, mas alguns avançaram como loucos nos pães e quem foi educado não comeu nada. À tarde fomos identificados e recebi uma chapa com o número 142292, a qual era obrigado a levar pendurada no pescoço. (...) A comida constituía somente em batata. Dormia-se no pedregulho. A primeira refeição vinha às 3h ou 4h da tarde, e muitos dias não vinha; então, comíamos neve para enganar o estômago. Já andava eu barbudo, sujo, cheio de muquirana e bichos de toda espécie.”
Segundo o parecer médico, “desde 1945, (quando voltou da Itália incorporado a FEB) ficou nervoso e não podia trabalhar”, tinha “crises de choro frequentes e tremores nas mãos” e às vezes “perdia os sentidos”. Waldemar morreu de leucemia em 1975, aos 55 anos. Ainda que não gostasse de falar sobre o assunto, recorreu ao diário para desabafar nos meses seguintes ao seu retorno, relatando ter pesadelos com o sangue, os gemidos e os gritos de angústia dos colegas que tombaram ao seu lado. “Vocês não avaliam o estado moral de um combatente que, após um árduo combate, é ferido e aprisionado; que passou fome, frio, sede, enfim, tudo que é possível um soldado sofrer, vendo sempre em sua frente uma cerca de arame, que foi humilhado pelos seus semelhantes, que viveu vários meses pensando na sua desgraça e sem notícias de seus entes queridos. Mas sofreu tudo com resignação porque ele também matou, talvez um pai, um filho ou noivo que alguém esperava, e cuja espera foi em vão.” Existem diversos relatos de pracinhas que enfrentaram dificuldades para se reintegrar à sociedade, com reportagens da época noticiando casos de “neurose de guerra”, alcoolismo, mendicância e suicídio entre esses veteranos.
Referência:
FERES, Cristina de Lourdes Pellegrino. A dupla face da guerra: a FEB pelo olhar de um prisioneiro. Baseado no diário do cabo Waldemar Reinaldo. São Paulo: Intermeios, 2023.




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