CARTA DE ALFORRIA DO CAMPONÊS DE FRANCISCO JULIÃO
(Para reflexão sobre o processo histórico de luta pela Reforma Agrária no Brasil)
No sábado pela manhã (12/01/2025), ao acessar o meu perfil de Instagram, surpreendo-me (embora nem tanto por conhecer o processo histórico de luta pela Reforma Agrária no país com as torturas, prisões e assassinatos de líderes camponeses por parte de jagunços de latifundiários e agentes dos órgãos de repressão do Estado) com a denúncia do Padre Júlio Lancellotti sobre mais um ataque contra agricultores familiares no Assentamento Olga Benário localizado na zona rural do município de Tremembé, estado de São Paulo, no dia 10/01/2025 (sexta-feira), que deixou dois mortos e seis feridos. Nos últimos dias falou-se bastante sobre o Golpe de 1964 e a Ditadura Civil Militar que a sucedeu e durou 21 anos em decorrência do sucesso do filme "Ainda estou aqui" que se tornou um sucesso de bilheteria e críticas pela academia cinematográfica ao redor do mundo.
Diante deste contexto, veio-me logo à mente a figura de Francisco Julião, um ator histórico fundamental no estudo da História do Brasil Republicano no período imediatamente anterior ao Golpe de 1964, principalmente no que tange à questão agrária em decorrência da sua liderança do movimento social das Ligas Camponesas na região Nordeste. Por este motivo, decidi resgatar a memória histórica através de um breve texto de Francisco Julião para a reflexão crítica dos leitores sobre a questão agrária no passado e no presente do Brasil.
Todavia, para uma melhor compreensão deste ator histórico, faz-se imprescindível pelo menos uma prévia e breve biografia dele. Francisco Julião Arruda de Paula, advogado, político e escritor brasileiro, liderou politicamente o movimento camponês conhecido como Ligas Camponesas. Nasceu no Engenho Boa Esperança, no agreste pernambucano. Ao final do Estado Novo, com a redemocratização, filiou-se ao Partido Republicano (PR). Em 1947 deixou o PR e aderiu ao Partido Socialista Brasileiro (PSB). Em 1948 foi convidado a assumir a defesa jurídica dos membros da Sociedade Agrícola e Pecuária de Pernambuco (SAPP), primeira associação camponesa do estado organizada pelos moradores do engenho Galileia, situado no município de Vitória de Santo Antão. Em 1954 foi eleito Deputado Estadual (primeiro parlamentar eleito pelo PSB em Pernambuco). Em 1962, foi eleito Deputado Federal por Pernambuco. Em 1964, com a ditadura militar, foi cassado e preso. Após ser solto em 1965, exilou-se no México, onde permaneceu até ser anistiado em 1979. Após a Anistia, atuou pela redemocratização do Brasil, sobretudo durante o Movimento das Diretas Já de 1984.
TRECHOS DA CARTA DE ALFORRIA DO CAMPONÊS
Por FRANCISCO JULIÃO
"Aqui do Recife, de Pernambuco, o berço das Ligas Camponesas, eu te mando esta carta, camponês do Brasil, na esperança de que ela chegará à tua casa.
És tu quem matas a nossa fome. E morres de fome. És tu quem nos vestes. E vives de tanga. Dás o soldado para defenderes a Pátria. E a Pátria te esquece. Dás o capanga para o latifúndio. E o capanga te esmaga. Dás a esmola para a Igreja. E a Igreja te pede resignação em nome de Cristo. Mas o Cristo foi um rebelado. E por isso subiu à cruz.
Esta carta, camponês do Brasil, há de chegar à tua mão. Ainda que te encontres perdido nas selvas do Amazonas. Ou debaixo dos babaçus do Maranhão. Ou das carnaúbas do Ceará. Ou dos canaviais do Nordeste. Ou à sombra dos cacaus da Bahia. E dos cafezais do Sul. Ou dos arrozais do São Francisco. E na região da erva mate. E dos pampas. Ou onde só haja carrasco e espinho. Com teu irmão vestido de couro. E o outro de machado ou tição de fogo na mão lutando contra a floresta para ganhar a terra. Ou com o papo amarelo lutando contra o grileiro, para defender a terra. No estado do Rio. No Paraná. No Goiás. No Maranhão. Ao longo das estradas abertas sobre o peito do Brasil. Por toda parte onde tu gemes, noite e dia, no cabo da enxada, do machado, da foice, do facão e do arado.
O latifúndio é cruel. Escora-se na polícia. E no capanga. Elege os teus piores inimigos. Para ganhar o teu voto usa duas receitas: a violência ou a astúcia. Com a violência ele te faz medo. Com a astúcia ele te engana. A violência é o capanga. É a polícia. É a ameaça de te jogar fora da terra. De te pôr a casa abaixo. De te arrancar a lavoura. De te matar de fome. De te chamar de comunista, e de dizer que Deus te castiga. Como se pudesse haver maior castigo do que esse em que vives. Acorrentado ao latifúndio. Em nome de uma liberdade que não é a tua liberdade. E de um Deus que não é o teu Deus.
A astúcia é te tomar de compadre. É entrar na tua casa de mansinho como um cordeiro. Com a garra escondida. Com o veneno guardado. É te oferecer um frasco de remédio. E o jipe para te levar a mulher ao hospital. E um pedaço de dinheiro por empréstimo. Ou uma ordem de fiado para o barracão. É te apanhar desprevenido, quando chega a eleição para te dizer: 'Compadre, prepara o título. Se o meu candidato ganhar, a coisa muda'. E quando o candidato ganha a coisa não muda. E se muda é para pior. Tu inchas de fome. Vão-se os anos. Passam os séculos. Escuta o que eu te digo: Quem precisa de mudar, camponês, és tu. Mas tu só mudarás se matares o medo. E só há um remédio para matar o medo: é a união. Com um dedo tu não podes tomar a enxada, o machado, a foice ou arado. Nem com a mão aberta porque os dedos estão separados. Tens de fechar a mão porque os dedos se unem. Sozinho tu és um pingo d´água. Unido ao teu irmão, és uma cachoeira. A união faz a força. É o feixe de varas. É o rio crescendo. É o povo marchando, é o capanga fugindo. É a polícia apeada. É a justiça nascendo. E a liberdade chegando.
Muitos são os caminhos que te levarão à liberdade. Liberdade quer dizer terra. Quer dizer pão. Quer dizer casa. Quer dizer remédio. Quer dizer escola. Quer dizer paz. Eu te apontarei esses caminhos. Mas eu te digo e repito: não adianta a viagem se tu fores sozinho. Convida teu irmão sem terra ou de pouca terra. E pede que ele convide outro. No começo serão dois. Depois, dez. Depois, cem. Depois, mil. E no fim serão todos. Marchando unidos. Como unidos vão à feira, à festa, à missa, ao culto, ao enterro, à eleição. Digo e repito: a união é a mãe da liberdade. São muitos os caminhos por onde poderás viajar com os teus irmãos. Eles começam em lugares diferentes, mas vão todos para o mesmo lugar. Que caminhos são esses? Esses caminhos são: (1) A democracia para o camponês; (2) o Sindicato para o camponês; (3) A cooperativa para o camponês; (4) Uma lei justa e humana para o camponês; (5) E o voto para o analfabeto.
Tenho a esperança de acender uma luz no teu espírito. De espantar o morcego que mora dentro dele chupando a tua coragem. Esse morcego é o medo. Acesa a luz que espante o medo, essa luz, amanhã, crescerá como uma fogueira. E depois como um incêndio.
Recife, 12-2-1961
Francisco Julião
Presidente de Honra das Ligas Camponesas de Pernambuco".
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