A obra "Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada" - Carolina Maria de Jesus

Carolina Maria de Jesus foi uma autora negra, favelada e catadora de papel que viveu na favela do Canindé, em São Paulo. A narrativa de "Quarto de Despejo" foi iniciada em 1955, mas ela não se encerra no final da edição. Há ainda hoje resquícios das temáticas que Carolina retrata em sua vida, que nos possibilitam uma reflexão profunda sobre a sociedade atual: a politicagem, a violência doméstica, o descaso com a população menos favorecida, preconceitos e a educação. Tais questões devem ser pensadas e voltadas à formação do indivíduo como ser social e ativo, consciente da sua realidade, com perspectivas de possíveis mudanças transformadoras.
A oportunidade da publicação do diário "Quarto de Despejo" emerge com o jornalista Audálio Dantas, em 1958, que, vivenciando uma fase da cultura de comunicação de massas no Brasil, tornava público o jornalismo de denúncia pela Folha da Noite. Ao ser incumbido de realizar uma reportagem sobre a favela que se estabelecia na beira do rio Tietê, se depara com "uns vinte cadernos encardidos que Carolina guardava em seu barraco. Li, e logo vi: repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela" (p. 3).
Carolina Maria de Jesus descreve a realidade em que vive tecida com elementos diferentes da cultura dominante (branca, elitizada e letrada). E, mais que uma denúncia da miséria em que vive, o exercício da voz por meio da literatura permite a Carolina a criação de um mundo impossível, de fantasias, uma vez que ela pontua que "é preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. [...] As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários" (p. 52). Desse modo, Carolina propõe a existência e representatividade da cultura popular, ao abrir espaço para a suposição de que pobre, semialfabetizado, marginalizado também merece seu lugar literário na cena nacional. Trata-se de uma espécie de literatura "marginal", construída com uma linguagem própria, que salienta o confronto entre a expressão de uma minoria e a arte canônica da classe dominante. Diferentemente da literatura tradicional, a literatura 'marginal' de Carolina com a sua trajetória na favela do Canindé é aquela produzida por afrodescendentes e por mulheres, na medida em que buscam modalidades de representação próprias.
A sociedade brasileira passava por uma intensa experiência democrática, que se inicia com a superação do Estado Novo (1937-45) e se encerra com a instalação da Ditadura Militar (1964). Carolina demonstra ser uma pessoa extremamente atualizada em relação ao que se passa na vida política do país, o que se comprova pelas constantes referências aos políticos em destaque na época, como Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Adhemar de Barros e Juscelino Kubitschek. A exploração da boa-fé do povo pelos políticos na época de eleições, as visitas dos candidatos à favela, os pequenos agrados e as promessas não cumpridas são registradas pela narradora de forma crítica e consciente.
"Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a Historia do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da pátria. [...] Quando o arco-íris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-íris estava sempre distanciando. Igual os políticos distantes do povo. Eu cansava e sentava. Depois começava a chorar. Mas o povo não deve cansar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo" (p. 48).
"Quando um politico diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na politica para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence as urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semicerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade" (p. 34).
"Nas ruas só se vê cédulas pelo chão. Fico pensando nos desperdícios que as eleições acarreta no Brasil. Eu achei mais difícil votar do que tirar o titulo" (p. 110).
A favela do Canindé, cenário em que Carolina Maria de Jesus viveu, teve sua origem no mandato do governador Adhemar de Barros, que "limpou" o centro da cidade ao retirar moradores de rua e "alojá-los" nas margens do rio Tietê, em meio a lixos e urubus, reforçando a desigualdade fundiária rural e urbana. Eram cerca de 180 barracos e uma torneira. A respeito dos contrastes sociais e territoriais de São Paulo, Carolina afirma: "Eu classifico São Paulo assim: O Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos" (p. 28).
"Quando estou na cidade tenho a impressão de que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludos, almofadas de cetim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo" (p. 33).
Ficam evidentes elementos que a seguem durante a narrativa, tais como a violência física, verbal, infantil e doméstica, a prostituição, o alcoolismo, intrigas e a inveja – uma extrema situação de vulnerabilidade. Os trechos a seguir apresenta algumas dessas fortes características: "E o pior na favela é o que as crianças presenciam. Todas crianças da favela sabem como é o corpo de uma mulher. Porque quando os casais que se embriagam brigam, a mulher, para não apanhar sai nua para a rua. Quando começa as brigas os favelados deixam seus afazeres para presenciar os bate-fundos. [...] A favela é o quarto das surpresas" (p. 40).
"A Dorça foi lavar roupas e ficamos conversando sobre as pouca vergonhas que ocorrem aqui na favela. Falamos da Zefa que apanha todos os dias. Falei das mulheres que não trabalham e estão sempre com dinheiro" (p. 115).
Carolina Maria de Jesus é frequentemente retratada como negra, mulher, pobre, semianalfabeta e mãe de três filhos de pais diferentes, de tal forma que essas características causam certa estranheza, por ter escrito um diário que repercutiu no mundo todo. Nasceu em 1914, e sua forma de escrita impressiona pelo fato de ter estudado apenas dois anos em uma escola espírita, na cidade de Sacramento, Minas Gerais. Toda sua educação formal na leitura e escrita advém deste pouco tempo de estudos. Sua infância e adolescência não foram fáceis, nem propícias a uma formação escolar, uma vez que necessitava do trabalho para sobreviver. No entanto, vemos em um trecho o almejo por um bom futuro, além da formação de caráter: "[a mãe] Queria que eu estudasse para professora. Foram as contingências da vida que lhe impossibilitaram concretizar o seu sonho. Mas ela formou o meu caráter, ensinando-me a gostar dos humildes e dos fracos" (p. 42). Logo, é frequente a sua inconformidade diante de sua condição, ao dizer que "parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade" (p. 72).
A ida para a favela do Canindé ocorre em 1948, visando melhores condições de vida; é onde nasce o primeiro filho, João José, fruto do relacionamento com um marinheiro português, que a abandona. Em 1950, nasce o segundo filho, José Carlos, após relacionamento com um espanhol; e três anos depois, Vera Eunice, com o dono de uma fábrica e comerciante, cuja identidade nunca foi revelada por Carolina e presente nos últimos anos do diário.
Mesmo na cidade, e em meio à pobreza, Carolina conseguiu se distinguir tanto por ser mulher bonita como por saber ler e escrever – estes últimos como forma de superioridade aos favelados, tendo em vista que não faz parte do contexto em questão. Ficam em grande evidência seus esforços nestas práticas realizadas com persistência em diversos momentos do dia e da noite - o que chama bastante atenção de quem a observa, gerando até mesmo comentários como "- Nunca vi uma preta gostar tanto de ler livros como você" (p. 23). Ela discorre que todos têm um ideal, sendo o dela o gosto por ler, que o livro é a melhor invenção do homem, e que ainda prefere escrever a discutir. Quando questionada sobre o que escreve, responde: "Todas as lambanças que pratica os favelados, estes projetos de gente humana" (p. 20). Ou ainda, quando enfrentada, desabafa e ameaça: "Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo o que aqui se passa. E tudo o que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornecem os argumentos" (p. 17). Além disso, vê em sua produção autobiográfica uma oportunidade de ganhar dinheiro e sair da favela – um dos maiores sonhos de Carolina.
A respeito de criar sozinha seus três filhos, Carolina defende sua posição ao constatar que são poucas as famílias em que marido e esposa são educados entre si e com os filhos, e que na maioria dos relatos há a violência familiar, brigas, "palavras de baixo calão". Ela demonstra ser solitária, apresentando trechos como no começo da narrativa, que representam a espera por alguém que não vem, e "como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar" (p. 19). Em determinado sentido, ser solteira assume uma conotação positiva, porque lhe possibilita maior independência e, inclusive, a liberdade de permanecer escrevendo até tarde da noite. Contudo, encontramos novamente contradições: ela se envolve com o senhor Manoel e o cigano Raimundo.
Carolina Maria de Jesus conviveu com o preconceito racial lado a lado, mas tinha consciência de que era semelhante aos outros mesmo que dissessem o contrário. Ela reforçava a ideia de que "Deus criou todas as raças na mesma época. Se criasse os negros depois dos brancos, aí os brancos podia revoltar-se" (p. 108), além de aceitar suas características: "[...] adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. [...] Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta. [...] A natureza não seleciona ninguém" (p. 58). No entanto, às vezes usa da sua cor para fazer comparações negativas, como "comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia" (p. 39) e "preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro" (p. 147). Outro agravante, talvez o mais exposto e sofrido na dura realidade de Carolina, tem relação à cor amarela: o limite da fome que passa do insuportável. Esse é um elemento fortemente presente no cotidiano da favela, e nossa narradora enfatiza incansavelmente a busca por doações, a falta de dinheiro para comprar comida, o auxílio de algumas vizinhas e até mesmo a procura em lixos pelo alimento: "Para mim o mundo em vez de evoluir está retornando ao primitivismo" (p. 34). Nesse aspecto, o efeito da saciedade da fome é descrito entusiasticamente: "A comida no estomago é como o combustível das maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Comecei a andar mais depressa. [...] Comecei a sorrir como se estivesse presenciado um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida" (p. 40).
Pela falta de alimento e pelo custo da vida, Carolina evoca o sentimento de suicídio como solução rápida para o sofrimento. Por vezes registra sua perda de interesse pela existência, mas não tem coragem para concretizar o ato contra sua vida. O ponto de desespero que podemos perceber é na passagem a seguir: "Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo?" (p. 153).
Carolina recorria a quem podia para ajudá-la nessas situações, como a diretora da escola de seus filhos e, mais frequentemente, o Centro Espírita Divino Mestre. Nessa perspectiva, a religião da narradora não é deixada clara, mas, apesar de ir ao referido centro, ela possuía conhecimentos católicos, como a Páscoa e a Bíblia, além da fé em um Deus onipotente e de alguns preceitos da Igreja: "Disse-lhe para ela ter paciência e esperar que Jesus Cristo vem ao mundo para julgar os bons e os maus" (p. 123). Outros conhecimentos gerais também são perceptíveis para alguém com tão pouca formação acadêmica formal, tal qual a ideia do cavalo de Troia e a perseguição de Cesar contra os cristãos – tudo isso deve ter sido absorvido com propriedade nos livros que Carolina encontrou em seu caminho. Durante toda a sua vida, Carolina teve uma saúde fragilizada. Feridas na perna, dores de cabeça, mal-estares prolongados e algumas intoxicações por comer alimentos estragados, apesar dos cuidados. O descaso com a saúde da população da favela era tamanho que o serviço de Saúde apresentou filmes sobre a doença caramujo, mas não forneceu os medicamentos, já que a doença era difícil de curar.
Carolina Maria de Jesus morre aos 63 anos no dia 13 de fevereiro de 1977, vítima de uma crise de asma, em Parelheiros, São Paulo. Após a publicação do Quarto de Despejo, em 1960, Carolina tornou-se uma heroína popular. Com as reportagens a seu respeito feitas por Audálio Dantas, e lançada com uma forte campanha de marketing, nossa personagem-escritora foi elevada ao sucesso, com mais de cem mil cópias produzidas. Deu entrevistas nas rádios e na televisão, participou de feiras de livros, inauguração de escolas, ficou conhecida em todo o Brasil, viajou para outros países e teve sua obra traduzida para outros idiomas. Dessa forma, por um breve momento, com prestígio na mídia e uma situação financeira relativamente estável, adquiriu a sonhada "casa de alvenaria" em Santana, bairro de classe média paulistano. Depois, mudou-se para a Chácara Coração de Jesus, no bairro de Parelheiros, periferia da Zona Sul de São Paulo, onde faleceu, longe dos holofotes.
Cumprindo seu papel de intelectual ao retratar o ambiente em que vivia, suas mazelas e dificuldades, bem como a dos moradores da favela do Canindé, Carolina Maria de Jesus nos oferece importantes informações a respeito da sociedade brasileira, tornando seus registros pessoais fontes documentais de grande importância historiográfica. Contudo, a estranheza da sociedade sobre a escritora é mútua, pois de um lado estão os favelados que nunca tinham visto algo semelhante, e do outro, a elite letrada que não a aceita porque Carolina representa tudo o que não deveria ser: mulher, negra e marginalizada, legitimou-se por meio da escrita de sua realidade e pela transição para um patamar elevado de vida.
Referências:
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma Favelada. São Paulo: Ática, 1995.

MITSUUCHI, Jéssica Tomiko Araújo. Contextos, reflexões e análises: Carolina Maria de Jesus e o Quarto de Despejo. Revista Vernáculo, n. 41, p. 255-282,1.º sem. 2018. Disponível em:



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