DOCUMENTO/MONUMENTO

(Porque ensinar aos cidadãos, desde a fase escolar, a pensar reflexiva e criticamente os monumentos e a História em vez de simplesmente alguns indivíduos quererem apagar certos registros do passado por motivações sociais, identitárias, políticas, etc.?)

Por JACQUES LE GOFF (Historiador francês da Terceira Geração da Escola dos Annales).
(1) Os materiais da memória coletiva e da História:
A memória coletiva e a sua forma científica, a História, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. Estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador.
A palavra latina monumentum remete para a raiz indo-europeia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a menória (memini). O verbo monere significa "fazer recordar", de onde "avisar", "iluminar", "instruir". O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos. Desde a Antiguidade romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: (1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco de triunfo, coluna, troféu, pórtico, etc.; (2) um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte.
O monumento tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos.
(2) O século XX: do triunfo do documento à revolução documental
Com a escola positivista, o documento triunfa. O seu triunfo, como bem o exprimiu Fustel de Coulanges, coincide com o do texto. A partir de então, todo o historiador que trate de historiografia ou do mister de historiador recordará que é indispensável o recurso do documento. No prefácio à obra coletiva L’istoire et sés méthodes, Samaran, enunciando os princípios do método histórico, declara: “Não há história sem documentos” [1961, p. XII].
No seu curso da Sorbonne, de 1945-46, sobre a historiografia moderna (retomado na obra póstuma La naissance de l’historiographie moderne), Lefebvre afirmava igualmente: “Não há notícia histórica sem documentos”; e precisava: “Pois se dos fatos históricos não foram registrados documentos, ou gravados ou escritos, aqueles fatos perderam-se” [1971, p. 17].
Todavia, se a concepção de documento não se modificava, o seu conteúdo enriquecia-se e ampliava-se. Em princípio, o documento era sobretudo um texto. No entanto, o próprio Fustel de Coulanges sentia o limite desta definição. Numa lição pronunciada em 1862 na Universidade de Estrasburgo, declarara: “Onde faltam os monumentos escritos, deve a história demandar às línguas mortas ou seus segredos... Deve escrutar as fábulas, os mitos, os sonhos da imaginação... Onde o homem passou, onde deixou qualquer marca da sua vida e da sua inteligência, aí está a história” [ed. 1901, p.245].
Os fundadores da revista "Annales d’histoire économique et sociale" (1929), pioneiros de uma história nova, insistiram sobre a necessidade de ampliar a noção de documento: "A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem".
"Toda uma parte, e sem dúvida a mais apaixonante do nosso trabalho de historiadores, não consistirá num esforço constante para fazer falar as coisas mudas, para fazê-las dizer o que elas por si próprias não dizem sobre os homens, sobre as sociedades que as produziram, e para constituir, finalmente, entre elas, aquela vasta rede de solidariedade e de entreajuda que supre a ausência do documento escrito ?" [Febvre,1949, ed. 1953, p. 428].
E, pelo seu lado, Bloch, na Apologie pour l’histoire ou métier d’historien [1941-42]: "Seria uma grande ilusão imaginar que a cada problema histórico corresponde um tipo único de documentos, especializado para esse uso... Que historiador das religiões se contentaria em consultar os tratados de teologia ou as recolhas de hinos ? Ele sabe bem sobre as crenças e as sensibilidades mortas, as imagens pintadas ou esculpidas nas paredes dos santuários, a disposição e o mobiliário das tumbas, têm pelo menos tanto para lhe dizer quanto muitos escritos".
Por isso, Samaran desenvolve a afirmação acima citada: "Não há história sem documentos", com esta precisão: "Há que tomar a palavra ‘documento’ no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou de qualquer outra maneira" [1961, p. XII].
O interesse da memória coletiva já não se cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos, a história que avança depressa, a história política, diplomática, militar. Interessa-se por todos os homens, suscita uma nova hierarquia mais ou menos implícita dos documentos; por exemplo, coloca em primeiro plano, para a história moderna, o registro paroquial que conserva para a memória todos os homens [cf. a utilização de documento de base que, de um modo pioneiro, lhe deu Goubert, 1960, e o valor científico que lhe foi reconhecido por Chaunu, 1974, pp. 306 ss.]. O registro paroquial, em que são assinalados, por paróquia, os nascimentos, os matrimônios e as mortes, marca a entrada na história das "massas dormentes" e inaugura a era da documentação de massa.
(3) A crítica dos documentos: em direção aos documentos/ monumentos
Recolhido pela memória coletiva e transformado em documento pela história tradicional ("na história, tudo começa com o gesto de pôr à parte, de reunir, de transformar em 'documentos' certos objetos distribuídos de outro modo", como escreve Certeau [1974, I, p. 20]), ou transformando em dado nos novos sistemas de montagem da história serial, o documento deve ser submetido a uma crítica mais radical.
Os fundadores dos "Annales" davam início a uma crítica em profundidade da noção de documento. "Os historiadores ficam passivos, demasiado frequentemente, perante os documentos, e o axioma de Fustel (a história faz-se com textos) acaba por se revestir para eles de um sentido deletério”, afirmava Lucien Febvre [1933, ed. 1953, p. 86], que lamentava, não já a ausência de sentido crítico nos historiadores, mas o fato de que se pusesse em discussão o documento enquanto tal. Assim, Marc Bloch teria escrito: "Não obstante o que por vezes parecem pensar os principiantes, os documentos não aparecem, aqui ou ali, pelo efeito de um qualquer imperscrutável desígnio dos deuses. A sua presença ou a sua ausência nos fundos dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, dependem de causas humanas que não escapam de forma alguma à análise, e os problemas postos pela sua transmissão, longe de serem apenas exercícios de técnicos, tocam, eles próprios, no mais íntimo da vida do passado, pois o que assim se encontra posto em jogo é nada menos do que a passagem da recordação através das gerações" [1941-42, pp. 29-30]. Mas era necessário ir mais longe.
O que transforma o documento em monumento é a sua utilização pelo poder. Não existe um documento objetivo, inócuo, primário. A ilusão positivista (que, bem entendido, era produzida por uma sociedade cujos dominantes tinham interesse em que assim fosse), a qual via no documento uma prova de boa-fé, desde que fosse autêntico, pode muito bem detectar-se ao nível dos dados mediante os quais a atual revolução documental tende a substituir os documentos.
A concepção do documento/monumento é, pois, independente da revolução documental e entre os seus objetivos está o de evitar que esta revolução necessária se transforme num derivativo e desvie o historiador do seu dever principal: a crítica do documento – qualquer que ele seja – enquanto monumento. O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa.
Michel Foucault colocou claramente a questão. Antes de mais nada, ele declara que os problemas da história podem se resumir numa só palavra: "o questionar do documento" [1969, p. 13]. E logo recorda: "O documento não é o feliz instrumento de uma história que seja, em si própria e com pleno direito, memória: a história é uma certa maneira de uma sociedade dar estatuto e elaboração a uma massa documental de que se não separa" [ibid., p. 13].
Segue-se-lhe a definição de revolução documental em profundidade e da nova tarefa que se apresenta ao historiador: "A história, na sua forma tradicional, dedicava-se a ‘memorizar’ os monumentos do passado, a transformá-los em documentos e em fazer falar os traços que, por si próprios, muitas vezes não são absolutamente verbais, ou dizem em silêncio outra coisa diferente do que dizem; nos nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos e o que, onde dantes se decifravam traços deixados pelos homens, onde dantes se tentava reconhecer em negativo o que eles tinham sido, apresenta agora uma massa de elementos que é preciso depois isolar, reagrupar, tornar pertinentes, colocar em relação, constituir em conjunto" [ibid., pp.13-14]. Assim como dantes a arqueologia tendia para a história, "poder-se-ia dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, nos nossos dias, tende para a arqueologia, para a descrição intrínseca do monumento" [ibid., p. 14].
O documento é um monumento de que era preciso encontrar, através de uma crítica interna, as condições de produção histórica e, logo, a sua intencionalidade inconsciente. O documento não é inócuo. É antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo.
Referência:
LE GOFF, Jacques. História e memória. 1. ed. Campinas: UNICAMP, 1990, p. 462-478.



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