OS PRIMÓRDIOS DA EDUCAÇÃO PÚBLICA NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO BRASIL: O ILUMINISMO, O DESPOTISMO ESCLARECIDO E A ESTATIZAÇÃO E SECULARIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO DO ENSINO NO REINO DE PORTUGAL POR MARQUÊS DE POMBAL

(Quais são as origens históricas da educação pública no Brasil?)

Por DERMEVAL SAVIANI/ SÉRGIO CASTANHO
(1) As ideias pedagógicas do Despotismo Esclarecido: Marquês de Pombal, o Iluminismo português e a reforma educacional
O século XVIII foi marcado, em Portugal, pelo contraste entre a atmosfera religiosa, ainda dominante, e a visão racionalista pautada pela lógica; entre o anseio por mudanças e o peso das tradições; entre fé e ciência. A penetração das novas ideias, de influência iluminista, dava-se especialmente a partir de portugueses residentes no exterior como Dom Luís da Cunha, Luís Antônio Verney, Alexandre de Gusmão, Sebastião José de Carvalho Neto (Marquês de Pombal) e Antônio Nunes Ribeiro Sanches. Pelos seus vínculos com outros países europeus, em especial com Inglaterra, Itália e França, esses personagens eram chamados de "estrangeirados". Defendiam o desenvolvimento cultural do Império português pela difusão das novas ideias de base empirista e utilitarista; pelo "derramamento das luzes da razão" nos mais variados setores da vida portuguesa; mas voltaram-se especialmente para a educação que precisaria ser libertada do monopólio jesuítico, cujo ensino se mantinha, conforme entendiam, preso a Aristóteles e avesso aos métodos modernos de fazer ciência. A nova situação se impôs com o advento, em 1750, do rei Dom José I e a consequente nomeação do futuro Marquês de Pombal como ministro.
Marquês de Pombal tinha um projeto modernizador cujo ponto de partida era retirar Portugal da dependência inglesa. Essa era a condição preliminar de seu projeto de cunho mercantilista que implicava, pelo aproveitamento racional da riqueza propiciada pelas colônias (em especial, pelo ouro do Brasil), a instalação de indústrias e a dinamização do comércio. Os nove princípios básicos do novo Estado português pensado por Marquês de Pombal eram: (1) o desenvolvimento da cultura geral; (2) o incremento das indústrias; (3) o progresso das artes; (4) o progresso das letras; (5) o progresso científico; (6) a vitalidade do comércio interno; (7) a riqueza do comércio externo; (8) a paz política; e (9) a elevação do nível de riqueza e bem-estar. Tal projeto modernizador resultaria, no campo educacional, em ações como: (a) a estatização e secularização da administração do ensino concentrando a gerência de todos os assuntos ligados à instrução na figura do diretor-geral de Estudos, criado pelo Alvará de 28 de junho de 1759, cuja ação se estendia a todo o reino por meio de diretores locais e comissários; (b) estatização e secularização do magistério, organizando exames de estado submetidos pela Diretoria-Geral dos Estudos como mecanismo de controle e condição do exercício docente, ficando proibidos de ensinar aqueles que não fossem aprovados nesses exames; (c) estatização e secularização do conteúdo do ensino que passou a ser controlado pela Real Mesa Censória mediante a censura de livros, antes exercida pelo Santo Ofício e obrigando os professores a encaminhar relatórios das atividades por eles realizadas, assim como do desempenho de seus alunos, à Diretoria-Geral dos Estudos; (d) estatização e secularização da estrutura organizacional dos estudos mediante a criação de aulas régias de primeiras letras e de humanidades mantidas pelo Estado com recursos provenientes do imposto “Subsídio Literário”, criado especificamente para esse fim; (e) estatização e secularização dos estudos superiores por meio de uma ampla e profunda reforma da Universidade de Coimbra. Pelas características indicadas, vê-se que as reformas pombalinas se contrapõem ao predomínio das ideias religiosas e, com base nas ideias laicas inspiradas no Iluminismo, instituem o privilégio do Estado em matéria de instrução.
(2) Os reflexos das reformas pombalinas no Brasil: os primórdios da educação pública na História da Educação Brasileira
O Alvará de 28 de junho de 1759 criou a figura do diretor de estudos, com as atribuições de supervisionar o ensino e apresentar relatório anual sobre o estado em que se encontram os estudos visando a evitar os abusos e sugerir os meios "mais convenientes para o adiantamento das escolas"; advertir e corrigir os professores que não cumprirem com suas obrigações dando ciência dos que não se emendarem à Sua Majestade para castigá-los com a privação do emprego e outras penalidades; diante das discórdias provenientes da contrariedade de opiniões dos professores, caberá ao diretor "extirpar as controvérsias" e "fazer que entre eles haja uma perfeita paz e uma constante uniformidade de doutrina" em benefício da profissão e do aproveitamento dos alunos. Ninguém poderia ensinar "nem pública nem particularmente, sem aprovação e licença do Diretor dos Estudos", sendo que a concessão dependeria de aprovação em exame feito por dois professores régios, devendo o pretendente preencher os requisitos de "bons e provados costumes" e "de ciência e prudência"; ademais, concedia-se a todos os professores régios o privilégio de nobres.
No dia 6 de julho de 1759, portanto, apenas oito dias após a promulgação do Alvará, foi assinada a carta régia de nomeação do cônego Dom Tomás de Almeida, principal da Igreja Patriarcal de Lisboa como diretor-geral de estudos do Reino e Ultramar. E já em 28 do mesmo mês ele lançou o primeiro edital convocando os candidatos ao novo magistério a se apresentarem para, após análise dos dados referentes à disciplina pretendida e, sendo o caso, de experiência anterior no magistério, serem submetidos aos exames de capacitação e de conhecimentos correspondentes à disciplina escolhida. Dom Tomás de Almeida exerceu as funções de diretor-geral dos estudos até junho de 1771, quando o cargo foi extinto e suas atribuições transferidas para a Real Mesa Censória, criada em 1768.
Uma das questões centrais enfrentadas pelo governo de Dom José I foi o problema da conciliação entre os interesses confessionais e os do Império. Tratava-se de evitar que a disputa com os jesuítas pudesse lançar água no moinho dos adversários, que se empenhariam em identificar, nessa disputa, indícios doutrinários contrários à fé católica. Buscava-se, pois, uma doutrina política que tinha como um dos elementos centrais o regalismo. Para tanto era necessário vencer a resistência da Inquisição. E já que o regalismo implica exatamente a subordinação dos assuntos da fé e da própria religião institucional ao poder secular, era preciso tornar a censura de livros uma atribuição exclusiva do poder temporal. Daí a criação da Real Mesa Censória seguida da secularização da Inquisição, que se converteu em instrumento de Estado. Removia-se, assim, o obstáculo representado pelo Tribunal do Santo Ofício.
Para garantir a manutenção das aulas régias a Real Mesa Censória enviou para a El Rei uma proposta de criação de um fundo pecuniário, o "Subsídio Literário", que dera origem à Lei de 6 de novembro de 1772. Em 10 de novembro foi redigido um alvará criando uma junta para a arrecadação e distribuição do "Subsídio Literário". Tal imposto destinava-se a suprir as necessidades financeiras da instrução pública, abrangendo os estudos menores (primário e secundário) e maiores (instrução superior). Além disso, atenderia a outras necessidades como a aquisição de livros, organização de museu, criação de laboratório de física, de jardim botânico, instalação de academias de ciências físicas e de belas-artes.
No Brasil o processo de implantação das reformas educacionais pombalinas iniciou-se logo após a aprovação do Alvará de 1759 com os concursos realizados na Bahia para as cadeiras de latim e retórica e a nomeação dos primeiros professores régios de Pernambuco. Mas o desenvolvimento das aulas régias deu-se em ritmo lento, pelas resistências encontradas e pela falta de recursos financeiros. Após a criação do "Subsídio Literário", em 1772, recebeu um novo impulso, mas foi já no reinado de Dona Maria I que os números previstos no plano de distribuição das aulas elaborado pela Real Mesa Censória e anexado à Lei de 6 de novembro de 1772 foram ultrapassados. Pode-se conjecturar que isso se deveu a duas razões básicas. De um lado, o caráter mais qualitativo do que quantitativo que marcou as reformas pombalinas. Estas tinham como objetivo criar a escola útil aos fins do Estado em substituição àquela que servia aos interesses eclesiásticos. De outro lado, no reinado de Dona Maria ocorreu, de algum modo, um retorno dos religiosos ao magistério, como professores de aulas régias. Isso, além de diminuir as resistências que ainda existiam ao afastamento dos jesuítas, aumentou o número de professores, reduzindo-se proporcionalmente os custos do magistério.
As aulas régias foram estendendo-se no Brasil, embora enfrentando condições precárias de funcionamento, salários reduzidos e frequentes atrasos no pagamento dos professores. As aulas régias eram sinônimo de escolas que, por sua vez, se identificavam com determinada cadeira, funcionando, em regra, na casa dos próprios professores. Daí as expressões "aulas de primeiras letras", "aulas de latim", "de grego", "de filosofia" etc. Eram aulas avulsas, portanto, os alunos podiam frequentar umas ou outras indiferentemente, pois, além de avulsas, eram isoladas, isto é, sem articulação entre si.
Tais aulas régias não eram, como certa literatura quer fazer crer, apenas para tapar os buracos abertos com a interdição do ensino jesuítico desde 1755 (à qual se seguiu, quatro anos mais tarde, sua alternativa pedagógica e sua expulsão física). Tratava-se, mais que isso, de um reposicionamento geral da sociedade portuguesa ou, em se preferindo, ibérica, que ia das bases econômicas mercantilistas à organização da cultura e de seu processo de transmissão, na educação.
Em 6 de novembro de 1772, foi promulgado também o "Mapa dos Professores e Mestres das Escolas Menores e das terras em que se acham estabelecidos as suas aulas e Escolas, neste Reino de Portugal e seus domínios". Tal diploma legal cometeu ao Brasil Colônia 44 aulas régias, preenchidas por 17 mestres de ler, escrever e contar, ou seja, os de nível "primário", locados quatro em Pernambuco, quatro na Bahia, quatro em Minas, dois no Rio de Janeiro, um em São Paulo, um no Pará e um no Maranhão; e por 27 professores de nível "secundário", dos quais 15 de gramática latina, três de grego, seis de retórica e três de filosofia.
A esses mestres e professores régios – e é bom que se diga que mestres eram os docentes de primeiras letras, e professores, os de humanidades, vale dizer, de ensino médio, todos, porém, rubricados nos chamados "estudos menores" – devem acrescentar-se os que, ao longo dos anos seguintes, foram sendo instituídos e providos por iniciativa local. Dessa sorte, só na Bahia, havia 49 aulas, entre "cadeiras" (humanidades, secundárias) e "escolas" (primeiras letras, primárias). Desse total, 14 estavam em Salvador, assim distribuídas: seis escolas primárias e oito cadeiras de humanidades (latim, grego, retórica, geometria e filosofia racional). Pode-se ainda acrescentar dez aulas régias no Ceará e 26 em São Paulo, tudo por volta de 1800. No quadro sobre a capitania de São Paulo, não consta nenhuma aula em Campinas, vila fundada em 1774 pelo Morgado de Mateus, e que na altura da virada do século XVIII para o XIX parecia já contar com pelo menos uma aula régia. O futuro regente do Império, padre Antônio Diogo de Feijó, foi mestre régio em Campinas.
As mudanças propostas pelas reformas educacionais pombalinas enfrentaram várias dificuldades para efetivar-se no Brasil Colônia, por diversas razões, entre as quais podemos mencionar: a escassez de mestres em condições de imprimir a nova orientação às aulas régias, uma vez que sua formação estava marcada pela ação pedagógica dos próprios jesuítas; a insuficiência de recursos dado que a colônia não contava com uma estrutura arrecadadora capaz de garantir a obtenção do "Subsídio Literário" para financiar as aulas régias; a reorientação provocada pela "Viradeira de Dona Maria I" que sobreveio a Portugal após a morte de Dom José I em 1777; e, principalmente, o isolamento cultural da colônia motivado pelo temor de que, por meio do ensino, se difundissem ideias emancipacionistas.
Com a morte de Dom José I, em 1777, subiu ao trono sua filha, Dona Maria I, Marquês de Pombal foi demitido e caiu em desgraça, tendo sido julgado e condenado, em 1781, à pena de desterro para vinte léguas (110 quilômetros) de distância da corte, vindo a falecer em 8 de agosto de 1782. Deixando-se cercar por elementos hostis a Marquês de Pombal, Dona Maria desencadeou um movimento de reação intencional, por isso mesmo chamado de "Viradeira de Dona Maria I". Tratava-se de uma espécie de revanche da nobreza ao projeto pombalino de construir uma nova nação, com indústria, intensificação do comércio e capitais provenientes de uma burguesia que vinha sendo fortalecida. Contudo, o que se sucedeu foi um abrandamento do regalismo laicizante de 1759 a 1772, mas, em todo caso, o processo teve continuidade. As aulas régias, com professores leigos ou clérigos, à custa do erário um pouco engordado pelo "Subsídio Literário" ou dos bolsos dos pais dos meninos d´aquém ou d´além-mar, essas mantiveram-se, mesmo após a chegada do regente D. João ao Brasil em 1808.
Referências:
CASTANHO, Sérgio. O Império e as correntes do mar histórico. In: LOMBARDI; José Claudinei; SAVIANI, Dermeval (Org.). Navegando pela história da educação brasileira. Campinas: Autores Associados, 2009, p. 113-142.

SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 5. ed. Campinas: Autores Associados, 2019.



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