JOHN DEWEY*: RELATOS DE VIAGEM DE UM EDUCADOR E FILÓSOFO LIBERAL NORTE-AMERICANO À UNIÃO SOVIÉTICA

(Documento/fonte primária fundamental para a compreensão da história política e da educação contemporânea mundial - século XX)

É pouco conhecido por parte de educadores e historiadores brasileiros que, John Dewey, reconhecido como o educador liberal avançado mais conhecido em todo o mundo, aceitou visitar a União Soviética, em 1928, junto com vários educadores de destaque internacional, a convite do governo soviético. Sobre a visita, Dewey escreveu diversos artigos, reunidos em livro lançado em 1929, nos Estados Unidos, com o título "Impressions of Soviet Russia and the Revolutionary World".
As observações de Dewey sobre a viagem à União Soviética eram publicadas na imprensa norte-americana à medida que a visita ia se realizando. As observações e análises de Dewey sobre o que presenciou na URSS, em pleno período do governo de Josef Stalin, na continuidade do processo de construção do socialismo real, têm excepcional valor histórico. É importante enfatizar que o educador e filósofo norte-americano era considerado uma autoridade em Educação desde antes da Revolução de 1917. Ele era tido como um dos dois maiores responsáveis pela introdução da Escola Nova naquele país. O outro foi Liev Tolstoi, escritor de renome que também era um educador entusiasmado com o movimento de renovação educacional escolanovista, que morreu em 1910.
Dewey presenciou, na União Soviética, a primeira tentativa de construção do socialismo no mundo. A nação soviética havia saído, então há pouco tempo, da sangrenta guerra civil que adveio após o êxito da Revolução, em 1917, em meio à Primeira Grande Guerra, cujas sequelas ainda estavam bem à mostra.
(1) As primeiras impressões de Dewey sobre a União Soviética:
"Certamente não estava preparado para o que vi; confesso que foi um choque para mim. Inquieto-me em saber se a liberdade é real e se algo novo está em construção na Rússia. Minha dúvida está em descobrir se persiste a influência da divulgação do caráter destrutivo do bolchevismo no imaginário das pessoas. Por vivenciar essa experiência tenho a obrigação de relatar com precisão tudo o que vi. Antes de expor os aspectos positivos significativos dos esforços construtivos, vale a pena dizer (o que, de fato, muitos visitantes já declararam): o que mais impressiona nas grandes cidades como objeto central na revolução é a conservação e não a destruição. Há mais destruição e vandalismo na Inglaterra, desde Henrique VIII, do que se imagina que os bolcheviques fizeram em Moscou e Leningrado. Acabei de chegar da Inglaterra com memórias recentes da ruína e vandalismo que ali presenciei. Muitas vezes desejei preparar um inventário comparativo das formas de destruição na arte e na arquitetura entre os dois países. Na Rússia, um sinal positivo da conservação de sua memória está na ampliação e multiplicação dos museus. Existe um extremo cuidado com os tesouros históricos e artísticos, demonstrando que ali não prevalece o espírito de destruição" (p.73-74).
(2) As visitas a Leningrado e Moscou, as experiências escolares na URSS e os reflexos da Revolução na vida e mentalidade do povo:
"Por isso, do ponto de vista comunista, o problema não é apenas substituir o capitalismo por instituições econômicas coletivistas, mas a substituição do individualismo enraizado no pensamento da maioria dos camponeses, dos intelectuais e na própria classe dominante por uma nova mentalidade centrada no coletivismo. Em um caráter 'dialético', essa difícil situação circular exemplifica a necessidade da construção de uma ideologia popular como determinante das instituições comunistas. O sucesso destes esforços depende da capacidade de criar uma mentalidade e atitude psicológica, sendo este, obviamente, um problema essencialmente educacional. Isso explica a extraordinária importância assumida na atual fase da vida russa pelas agências educacionais e, contabilizando sua importância, possibilita interpretar o espírito dos eventos em curso na sua fase construtiva" (p. 79).
"A população deve aprender o significado do comunismo não tanto por indução da doutrina marxista, embora haja muito dela nas escolas, mas por aquilo que é feito para libertar a sua vida, dando-lhes um sentido de segurança, acesso à recreação, ao lazer, ao prazer e a todos os tipos de culturas. A propaganda e a educação são mais eficazes, completas e ricas quando voltadas a ações que elevem o nível de vida popular, possibilitando avanços que concretizem a mentalidade do 'coletivo'"(p. 81).
(3) Sobre as escolas na União Soviética:
"De fato, considerando estas dificuldades, fico espantado com os progressos realizados, pois, embora limitados em alcance real, é algo sem precedentes, uma preocupação constante, um organismo em auto movimento. Como visitante americano, sinto orgulho patriótico em notar que em muitos aspectos, aquele modelo educacional foi influenciado pela escola progressiva nos Estados Unidos e me estimulo a uma nova empreitada voltada a compreender como essa ideia foi, organicamente, melhor incorporada no sistema russo do que em meu próprio país. Mesmo que um educador liberal não concorde com a afirmação dos educadores comunistas que os ideais progressistas liberais só podem ser realizados em um país que passa por uma revolução econômica rumo ao socialismo, é forçado a reconhecer em suas emoções e pensamentos que todas essas ações educacionais são necessárias e saudáveis" (p. 81).
(4) A escola politécnica unificada do trabalho no período de construção do socialismo real:
"A centralidade do trabalho na educação russa está presente na seleção dos conteúdos do currículo educacional. Esse princípio é designado oficialmente como um 'sistema complexo'. Em geral, o sistema significa o abandono dos estudos em disciplinas isoladas, inspirados nos programas de escolas convencionais. Sua ação educativa visa analisar os objetos em estudo relacionados a uma totalidade manifesta nas relações entre o homem e a sociedade. Empregando as palavras do comunicado oficial: 'Na base de todo o programa encontra-se o estudo do trabalho humano e sua organização. O ponto de partida é o estudo deste trabalho como encontrado em suas manifestações locais'. As observações últimas são, no entanto, desenvolvidas em 'recorrência à experiência expressa nos livros sobre a humanidade, isto é, o modo que os fenômenos locais podem ser ligados com a vida industrial nacional e internacional" (p. 101).
(5) A educação progressiva e a aplicação da ideia deweyana da utilização da experiência na escola na URSS:
Em várias passagens do livro, Dewey faz referências positivas às iniciativas culturais que teve oportunidade de conhecer na União Soviética, particularmente a instalação de um grande número de museus nas cidades soviéticas, sobre os mais diversos temas, com elevado significado cultural, e abertos à visitação do grande público. Ele credita a qualidade desse trabalho à orientação segura do Comissário do Povo para a Instrução Pública, o escritor, teatrólogo e estadista Anatoli Lunatcharski.
Lunatcharski faz uma referência a Dewey, cuja importância está em dar uma conotação distinta da aplicação da ideia deweyana da utilização da experiência na escola. A observação consta da intervenção feita por Lunatcharski, na Casa dos Sindicatos, em 4 de dezembro de 1922. Diz ele: "Quando Dewey descreve como devem preparar-se os alimentos e como se podem deste modo dar-se excelentes lições de química e física, de botânica e zoologia, de higiene e fisiologia, tem profundamente razão. Se bem que me tenham feito a objeção a este propósito de que, se se falar tanto ao preparar o almoço alguma coisa se vai evaporar, alguma coisa vai se queimar, etc., creio, contudo, qu esta abordagem é mais ou menos a boa. Se se encarar a coisa desta maneira, então, bem entendido, isso terá um valor pedagógico. Mas se as crianças racham lenha, preparam o almoço, vão buscar água, hoje, e fazem o mesmo amanhã e depois de amanhã, isso não contribui muito para o desenvolvimento intelectual, nem mesmo o físico. Será, então, um trabalho bastante obtuso. Nós, os comunistas, procuramos por todos os meios suprimi-lo completamente. O nosso ideal é o de poupar este trabalho fatigante à mulher e à crianças que é obrigada a ajudá-la na roupa, na cozinha, na louça, substituindo tudo isso por um grande serviço doméstico coletivo, por uma ampla industrialização de todas essas funções" (p. 119).
*John Dewey foi um filósofo e educador norte-americano, principal representante da filosofia experimentalista / instrumentalista, teórico da educação progressiva, defensor da democracia e mestre de Anísio Teixeira na Universidade de Columbia, Nova Iorque.
Referências:
DEWEY, John. Impressões sobre a Rússia Soviética e o mundo revolucionário. Uberlândia: Navegando Publicações, 2016.

LUNATCHARSKI, Anatoli. Artigos e discursos: sobre a instrução e a educação. Moscou: Edições Progresso, 1988.



TEXTOS MAIS LIDOS