OS ARTIGOS E O DEBATE SOBRE AS DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL ENTRE ANÍSIO TEIXEIRA E CARLOS LACERDA NOS ANOS 1950
(Para uma reflexão sobre a mobilização pela defesa da Escola Pública na História da Educação do Brasil)
1.º Artigo por CARLOS LACERDA X 2.º Artigo por ANÍSIO TEIXEIRA
*** 1.º ARTIGO***
O DONO DA EDUCAÇÃO ESTÁ ZANGADO
Por CARLOS LACERDA (Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 6 de junho de 1959)
A Educação no Brasil está ameaçada, na hora em que uma lei básica é levada ao Congresso por uma audaciosa e agressiva minoria que pretende impor a sua vontade ao país. À frente dessa minoria está um homem que tem a tenacidade da sua frustração e não usa armas leais nem reconhece o valor do jogo democrático.
Um reduzido grupo de "donos" da educação insiste em continuar com essa propriedade como se a educação fosse marca registrada, depositada em cartório para dar aos seus senhores um domínio absoluto e o direito de somente eles falarem em seu nome.
O Brasil tem ainda um hábito realmente nefasto, o de rotular uma pessoa de senhora de certos assuntos, que passam a constituir seu latifúndio. Na música, o grande Villa Lobos ia sendo vítima desse hábito nacional. Na pintura, o imenso Portinari quase vê liquidado o seu valor de artista pela imposição de um rótulo com o qual seria êle o único pintor representativo do Brasil. Na sociologia, o grande escritor que é o Sr. Gilberto Freyre correu esse risco, o de ser "o sociólogo" brasileiro: libertou-se por um processo através do qual ele próprio suscitou a formação de outros, estimulou vocações, animou capacidades novas. Na arquitetura foi preciso que o Sr. Lúcio Costa fosse um prodígio de modéstia para não ficar dono do assunto: em seu lugar entronizou-se o Sr. Oscar Niemeyer, o talentoso arquiteto cujos defeitos e cacoetes artísticos vêm precisamente desse papado arquitetônico que lhe atribuíram, arquiteto oficial do Estado Novo e do faraó Tutankashek I.
Na educação, as pessoas que nada entendem do assunto convencionaram que o Sr. Anísio Teixeira é "o" entendido de educação. Daí a ser dono dela, foi um pulo – que o Sr. Anísio deu gostosamente. Fez-se proprietário do assunto. Espalhou-se em livros, conferências, artigos nos quais a sua concepção filosófica mistura um picadinho de John Dewey (na versão taquigráfica de discurso recente na Câmara chamado Due e Diu) com um ataque agudo de laicismo "faisandé" desses que são menos uma expressão da inteligência do que da psique inflamada. De horror à religião e de estatismo reacionário.
Acompanho, desde há muito, a evolução do pensamento educacional do Sr. Anísio Teixeira e de alguns respeitabilíssimos dinossauros da educação no Brasil. À medida que passam os anos em vez de clarear esse pensamento escurece. Tudo, agora, para ele se resume neste lema "novidadoso": "écraser l’infâme". (Na versão taquigráfica: "écraser l’enfant", curiosa e significativa corrupção...). O Sr. Anísio Teixeira é um desses muitos que procuram Deus a socos e pontapés e hão de um dia encontrá-lo, pois o que sentem – eu conheço de experiência própria essas aflições – é nostalgia da fé, é saudade da crença. A sua experiência pessoal justifica, até certo ponto, esse traumatismo que o faz desesperar da esperança, secar num brilho intelectualista que chega ao disparate, uma inteligência aguda que se faz trombuda, um raciocínio que se enovela a ponto de em vez de um desenvolvimento lógico nos apresentar um enroscamento, uma espécie de espiral de frases, frases, frases. Se não é o maior educador brasileiro, sobretudo depois do seu malogro como Secretário de Educação na Bahia, onde nada deixou do muito que se esperava de sua atuação, é certamente no momento o mais verboso.
Atualmente ele dispõe de uma verba, que emprega como muito bem entende, no Ministério da Educação, superior aos orçamentos de mais de 10 Estados brasileiros somados. Essa posição lhe assegura, além da patente de invenção da educação, que registrou para o mercado brasileiro, uma importância superior à sua razoável e incontestável importância, uma ascendência superior à sua compreensível e aceitável autoridade na matéria.
Os processos de luta do Sr. Anísio Teixeira contra o atraso da educação no Brasil são realmente curiosos. Ele luta – participando do atraso, ele condena em conferências aquilo de que participa. E quando se trata de mudar a rotina da educação, contra a qual clamava enquanto não havia perigo de mudá-la, ele dá tudo o que tem e até o que apenas julga ter para conseguir que quanto mais se mude mais fique a mesma coisa.
Os seus instrumentos de trabalho são realmente curiosos. O projeto que fabricou é perfilhado, na Câmara, pelo ex-chefe de gabinete do ministro da Educação, eleito com o dinheiro das bolsas de estudo para alunos pobres, dinheiro portanto que foi roubado ao ensino para eleger um deputado cuja frieza diante do fato moral é realmente o espetáculo mais penoso desta legislatura. Esse é o intérprete, e porta-voz do Sr. Anísio Teixeira na Câmara. Ou antes, o Sr. Anísio Teixeira transforma-se no justificador doutrinário, no capanga ideológico da manutenção do "status quo" da rotina corrupta e incompetente no ensino brasileiro.
Seja tudo pelo amor à cruzada sem cruz a que o Sr. Anísio se atira. Esse fanático da irreligiosidade leva ao campo da educação as suas frustrações místicas. Como bem lembra McCluskey, no seu livro – cuja leitura faria um grande bem à inteligência do sr. Anísio Teixeira – "Escolas públicas e educação moral"– para destruir a metafísica é preciso criar outra metafísica, o Sr. Anísio Teixeira acaba cozinhando uma metafisiquinha de bolso, dentro da qual transforma em volutas e espirais as suas generalidades mais ou menos sociológicas sobre a educação e a escola.
Tem-se a impressão de que o Sr. Anísio Teixeira está zangado porque querem lhe tomar um brinquedo. O permanente servidor da rotina e da mediocridade da educação oficial está triste: se a educação for levada a sério por todos, como poderá o Sr. Anísio Teixeira continuar dono dela?
*** 2.º ARTIGO ***
ANÍSIO TEIXEIRA RESPONDE A CARLOS LACERDA
Por ANÍSIO TEIXEIRA (Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 10 de junho de 1959)
Recebemos ontem:
Meu caro Carlos Lacerda: Li a sua nota a meu respeito na TRIBUNA de ontem. Quero agradecer-lhe o feliz esclarecimento que trouxe ao público. Nada mais estúpido, realmente, do que essa história de ser alguém dono da educação. E, por certo, seria eu a última pessoa a poder sê-lo, como V. muito bem demonstrou.
Ninguém melhor do que V. sabe quanto sou um "vencido" em educação. Vencido fui em 1935, depois de um esforço que mereceu aplausos seus, mas nem por isto deixou de ser varrido até o último vestígio por dez anos de Estado-Novo. Nesses dez anos, fui um modesto comerciante na Bahia.
Em 1946, fui convocado para trabalhar na UNESCO, merecendo tal convite um artigo seu de extrema generosidade. Não fiquei, porém, orgulhoso por isto, e deixei a UNESCO em 1947, para voltar a vida privada.
Otávio Mangabeira impediu-me de levar avante o propósito, fazendo-me retornar ao serviço público, como seu secretário da Educação. Fui, efetivamente, um mau secretário. Propus-lhe um plano radical de organização do sistema escolar do Estado e esse plano não logrou ser aprovado na Assembléia Legislativa. Chamado novamente para a UNESCO, aceitei o convite, mas o governador recusou dar-me a necessária licença, continuando a servi-lo, com devotamento mas nem por isto com eficiência. O que se fez, nesse tempo, na Bahia – fragmentária e incompletamente, mas com imenso custo – se deve, exclusivamente, ao espírito de compromisso, paciência e pertinácia do grande governador a quem procurei servir.
Depois dessa experiência, voltei ao velho propósito de não aceitar cargo de responsabilidade direta na administração da escola pública brasileira.
Recusei o convite do ministro Simões Filho para ser o diretor do Departamento Nacional de Educação, cargo que, ainda em 1946, também recusara aceitar das mãos do ministro Clemente Mariani.
Instado, depois aceitei a secretaria-geral da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, procurando, assim, devotar-me a um trabalho de certo modo apenas subsidiário, a fim de não participar de uma situação educacional, oriunda do Estado Novo, que, ao meu ver agravara até ao absurdo velhos defeitos da estrutura escolar nacional.
Com a morte trágica de Murilo Braga, e diante de novo convite do ministro Simões Filho, aceitei dirigir o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, por se tratar de uma instituição de estudos, sem responsabilidade direta sobre a administração do sistema escolar vigente.
Neste posto, procurei criar uma organização de centros de pesquisa – na realidade seis: o Centro Brasileiro aqui no Rio e cinco centros regionais no Recife, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre – para o estudo e a análise da situação educacional brasileira e o aperfeiçoamento dos professores. Os seus diretores são um dos meus mais justos orgulhos: Gilberto Freyre, no Recife; Luís Ribeiro Sena, em Salvador; Abgar Renault, em Belo Horizonte; Fernando de Azevedo, em São Paulo; Eloah Kuntz, em Porto Alegre, e Péricles Madureira de Pinho, aqui no Rio. Tais centros são ambiciosos, talvez, nos seus objetivos de estudo, mas não dispõem de nenhuma parcela de poder, para serem donos de coisa alguma, salvo de sua honestidade de propósitos e do seu espírito de trabalho.
Embora o meu esforço se tenha, assim, afastado, voluntariamente, de qualquer exercício de poder, uma vez que a obra do INEP se restringe à ajuda às escolas, mediante convênios com os Estados e Municípios, e a sugestões aos professores, vi-me, no ano passado, violentamente atacado por autoridades eclesiásticas, que dentre as centenas de milhares de funcionários federais, escolheram o diretor do INEP como o único a ser destruído.
Sem nenhum poder, nem direto nem indireto, sobre as escolas, não nomeando um só professor, por que devia eu ser destruído? – Porque o INEP empreendeu uma obra de crítica e análise da situação educacional brasileira. Logo longe de "dono da educação" sou exatamente o alvo daqueles que se propõem ser "donos da educação". E, talvez por isto mesmo é que hoje sou alvo dos seus ataques.
Você é um recém-chegado ao campo da educação nacional. Segundo sua própria declaração, em Belo Horizonte, veio acolitado pelos educadores padre Alonso, reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professor Carlos Flexa Ribeiro e ex-vereadora Sandra Cavalcanti. Com tal auxílio, redigiu um substitutivo para a lei magna da educação nacional, advertindo que a lei iria passar e "saíssem da frente os que a ela se opusessem", pois os mesmos "seriam pisados".
Não lhe parece que tal linguagem é exatamente a de alguém que se fez "dono da educação", ou que representa seus "donos"?
Meu caro Carlos Lacerda: os meus trinta e cinco anos de experiência pública e privada do Brasil não deixaram de me trazer algum ensinamento. Os "donos" de qualquer coisa, em nosso país, não encontram entre os que defendem os interesses dos "muitos". Os donos são sempre os defensores dos "poucos". A arrogância com que está defendendo o seu projeto é uma indicação de que do seu lado estão os "poucos" todo-poderoso os "donos" da educação os que representam os "interesses criados na educação nacional. Os que estão do lado do "cabo" do chicote.
Os autores do projeto oficial de Bases e Diretrizes não são funcionários todo-poderosos, mas educadores respeitabilíssimos. O primeiro projeto Clemente Mariani não contou com a minha colaboração. A comissão que o elaborou compunha-se dos seguintes nomes: M. B. Lourenço Filho, Pedro Calmon, A. F. Almeida Júnior, Cesário de Andrade, Mário de Brito, Leonel França, Levi Carneiro, A. Amoroso Lima, Arthur Filho, J. Farias Góis, Maria J. Scmidt, A. Carneiro Leão, M. A. Teixeira de Freitas, Agrícola Bethlem e Celso Kelly. Dei-lhe a minha solidariedade nos aspectos principais. As minhas reservas, entretanto, não foram pequenas e constam da exposição que fiz perante a Comissão de Educação da Câmara. No substitutivo apresentado pelo ministro Clóvis Salgado a esse projeto, colaborei, mas fui, nos pontos principais que defendo, vencido.
Nas sugestões recentemente apresentadas pelos educadores José Augusto Carneiro Leão, J. Faria Góis, Abgar Renault, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Almeida Júnior (relator), Raul Bittencourt e Anísio Teixeira, consubstancia-se um projeto mais ligado à proposta inicial do governo do que ao meu ponto de vista. Nem por isso lhe neguei a minha assinatura, pois não sou "dono da educação" mas um dos seus modestos colaboradores, habituado a ser vencido em minhas proposições pessoais, apenas vitoriosas quando aceitas pelos demais. Está claro que essa minha aprovação com reservas não significa que não apoie o espírito geral do projeto.
Aprovação a projeto como o seu substitutivo é que não poderia dar, pois a meu ver virá ele entregar a educação a forças das mais reacionárias de nosso país, aos interesses privados dos "donos de colégios" que, este sim, pretendem passar de "donos de colégios" a "donos da educação nacional".
Não é sem razão que a TRIBUNA DA IMPRENSA e o meu caro amigo podem sentir-se tão à vontade em sua defesa. Só se defendem com tamanha truculência interesses poderosos e interesses conservadores.
Seu admirador e ex-admirado,
Anísio S. Teixeira.
Referências:
LACERDA, Carlos. O dono da educação está zangado. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 6 jun. 1959. Disponível em: <http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/aj41.html>.
TEIXEIRA, Anísio. Anísio Teixeira responde a Carlos Lacerda. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 10 jun. 1959. Disponível em: <http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/lacerda.html>.
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