DIGO NÃO À DITADURA
(Trechos de depoimentos históricos do Dr. Heráclito Fontoura SOBRAL PINTO, advogado e defensor de presos políticos durante as ditaduras varguista do Estado Novo - 1937 a 1945 - e militar - 1964 a 1985)
Por DR. Heráclito Fontoura SOBRAL PINTO
(1) POR QUE FUI ADVOGADO DE DEFESA DOS COMUNISTAS LUIZ CARLOS PRESTES E HARRY BERGER EM PLENA DITADURA DO ESTADO NOVO? (TODO SER HUMANO MERECE TER A DIGNIDADE E AS LIBERDADES INDIVIDUAIS RESPEITADAS):
Fui nomeado pelo juiz Raul Campelo Machado – o que fez o processo do pessoal que pegou em armas em 1935 – para defender o Capitão Luiz Carlos Prestes e Harry Berger. Isto por indicação do presidente do Conselho da Ordem dos Advogados. A lei previa e bem, em virtude da experiência de outros países, que os comunistas, quando processados por tribunais burgueses, não se defendiam a não ser quando pudessem utilizar sua defesa como propaganda de sua ideologia. Ora, àquela época, eles (os comunistas) não podiam fazer isso, pois havia um tribunal de exceção. Assim, não indicaram advogado. De acordo com a lei, o juiz do processo deveria oficiar ao Conselho local da Ordem dos Advogados, pedindo a indicação de um advogado. O presidente do Conselho, Targino Ribeiro, bateu em várias portas, principalmente de pessoas tidas como esquerdistas, as quais se negaram a defender Prestes. Aceitei minha indicação por dois motivos: O Targino não tinha de consultar ninguém, pois a lei autoriza e manda que o presidente do Conselho simplesmente nomeie; ao advogado não cabe rejeitar a indicação. A recusa implica em falta grave, podendo até mesmo acarretar a suspensão da Ordem dos Advogados. Em segundo lugar, a mim sempre me pareceu que toda pessoa tem direito a ter um advogado a seu lado. Eu sabia, como todo mundo sabia, que os comunistas estavam sendo maltratados, e brutalmente. Ninguém tem o direito de desconhecer tal fato. E quem diz que não sabia, mente. Por covardia ou o que quer que seja.
A minha designação, pelo Conselho da Ordem, ao Tribunal de Segurança Nacional, para defender os acusados Luiz Carlos Prestes e Arthur Ernest Ewert ou Harry Berger, de que me dá notícia no seu ofício n. 20, de 8 do corrente, somente ontem recebido, eu aceito como dever indeclinável de nossa profissão. Lamento apenas não dispor dos dotes de inteligência necessários ao desempenho de tão árdua, penosa e difícil missão, que o Conselho da Ordem achou, na sua soberania, que devia de lançar sobre meus frágeis ombros. O que me falta em capacidade, sobra-me, porém, em boa vontade, para me submeter às imposições do Conselho da Ordem; e em compreensão humana, para, fiel aos impulsos do meu coração cristão, situar, no meio da anarquia contemporânea, a atitude destes dois semelhantes, criados, como eu e todos nós, à imagem de Deus. Qualquer que sejam as minhas divergências, do comunismo materialista – e elas são profundas – não me esquecerei, nesta delicada investidura que o Conselho da Ordem me impõe, que simbolizo, em face da coletividade brasileira exaltada e alarmada, A DEFESA. Espero que Deus me ampare nessa hora grave da minha vida profissional, dando forças ao meu espírito conturbado para mostrar aos juízes do Tribunal de Segurança Nacional que Luiz Carlos Prestes e Arthur Ernest Ewert ou Harry Berger são membros, também, desta vasta e tão atribulada família humana. Alimento a fundada esperança de que encontrarei, neste reservatório imenso que é a caridade cristã, recursos dignos e apropriados para, sem renegar os princípios básicos da civilização brasileira, demonstrar que os acusados, ora indicados ao meu patrocínio, a par de erros funestíssimos, alimentam-se, também, de verdades generosas, para a difusão das quais são capazes de grandes e respeitáveis renúncias. Adotando, na defesa que irei fazer, essa orientação, penso, meu caro presidente, trabalhar para a manutenção, entre nós, das "tradições" de desinteresse e amor às liberdades públicas, hoje em dia tão esquecidas no nosso meio.
Um dos mais constantes cuidados da civilização cristã tem sido o estabelecimento, no seio dos povos que aceitam os seus postulados, d’um regime carcerário que dê aos detentos, independentemente de sua condição social e da sua categoria profissional, a noção exata de que não perderam, com a reclusão, as suas prerrogativas de criatura racional. Criminoso ou inocente, rico ou pobre, correligionário ou adversário político, o encarcerado precisa de receber, nas prisões mantidas pelos Estados que se dizem cristãos a impressão de que os poderes públicos continuam a divisar nele aquela característica constante e irremovível, que o crime poderá ter feito adormecer, mas não desaparecer totalmente: a sua espiritualidade, esta centelha do divino incrustada na ganga frágil do organismo humano. Só com a submissão a esta lei da racionalidade da nossa natureza poderá o Estado e nobilitar a sua árdua e penosa missão de punir e castigar.
Pois bem, Sr. Juiz, os responsáveis atuais pela guarda de Harry Berger parece-nos que atentaram em todas estas ponderações, mas para aplicar-lhe, precisamente, e com conhecimento de causa, o regime oposto ao que deflui destes postulados, hoje universalmente aceitos e proclamados. Metido no socavão de lance inferior de uma das escadas da Polícia Especial, aí passa Harry Berger os dias e as noites, sem ar convenientemente renovado, sem luz direta do sol, e sem o menor espaço para se locomover. Nem cama, nem cadeira, nem banco. Apenas um colchão sobre o lajeado. De alfaias, nenhuma notícia. Absolutamente segregado de todo e qualquer convívio humano, a ouvir, de momento a momento, as passadas dos soldados em trânsito pelas escadas – sobre sua cabeça – não pode usufruir nem dos benefícios do repouso, nem os do silêncio. Nenhuma visita, nem de amigos, nem de parentes. Proibição de toda e qualquer leitura, quer de jornais, quer de livros. Ausência total de correspondência: se a ninguém escreve, ninguém, também, lhe escreve. E como poderia ele, ainda escrever, se lhe sonegam tudo: papel, lápis e caneta. Assim, entram os dias e as noites, vencem-se semanas sobre semanas, sobrepõem-se os meses uns aos outros, e Harry Berger, num isolamento alucinante, se vê invariavelmente entregue ao seu só pensamento, na imobilidade trágica de sua agonia sem fim, e do seu abandono até hoje sem remédio, apesar dos clamores estridentes de seu defensor impotente. A roupa que traz – calça e paletó sobre a pele – ele não a muda desde meses. Nela já não existe mais uma só superfície disponível onde se possam fixar novas sujeiras. A vista só deste vestuário – se é que tais andrajos podem ser assim qualificados – provoca náuseas incoercíveis.
Semelhante desumanidade precisa cessar e de cessar imediatamente, sob pena de deslustre para o prestígio deste Tribunal de Segurança, que, para bem cumprir sua árdua tarefa necessita de pautar sua ação pelas normas inflexíveis da serenidade e da justiça. Tanto mais obrigatoriamente inadiável se torna a intervenção urgentíssima de V.Exa., Sr. Juiz, quanto somos um povo que não tolera a crueldade, nem mesmo para com os irracionais, como demonstra o decreto n. 24.645, de 10 de julho de 1934, cujo artigo 1º dispõe: "Todos os animais existentes no país são tutelados do Estado". Para tornar eficiente tal tutela, esse mesmo decreto estatui: "Aquele que, em lugar público ou privado, aplicar ou fizer aplicar maus-tratos aos animais, incorrerá em multa de 20$000 a 500$000 e na pena de prisão celular de 2 a 15 dias, quer o delinquente seja ou não o respectivo proprietário, sem prejuízo de ação civil que possa caber" (art. 2º). E, para que ninguém possa invocar o benefício da ignorância nessa matéria, o art. 3º do decreto supramencionado define: "...Considerem-se maus-tratos: [...] II – Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz". Baseado nesta legislação, um dos juízes de Curitiba, estado do Paraná. Dr. Antônio Leopoldo dos Santos, condenou João Mansur Karen à pena de 17 dias de prisão celular, e à multa de 520$000, por ter morte a pancadas um cavalo de sua propriedade (doc. Junto). Ora, num país que se rege por uma tal legislação, que os magistrados timbram em aplicar, para, deste modo, resguardarem os próprios animais irracionais dos maus-tratos até de seus donos, não é possível que Harry Berger permaneça, como até agora, meses e meses a fio, com a anuência do Tribunal de Segurança Nacional, dentro de um socavão de escada, privado de ar, de luz e de espaço, envolto, além do mais, em andrajos, que, pela sua imundície, os próprios mendigos recusariam vestir.
Porque, outrossim, enveredar o nosso Poder Público por este caminho que lhe amesquinha, ante os homens de coração bem formado, a autoridade moral? Será porque Harry Berger é estrangeiro? Mas, por ser estrangeiro perdeu o direito de ser considerado criatura racional? Não inscrevemos nós na Constituição de 18 de julho de 1934 (art. 113.1), o postulado de que todos são iguais perante a lei, não havendo privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas?
Por outro lado, ninguém, que se honre com o magnífico nome de cristão, tem o direito de não estender sua mão amiga a quem, como Luiz Carlos Prestes, se vê insultado, injuriado, e escorraçado do convívio dos seus semelhantes. Por maiores que sejam as suas culpas, há nele alguma coisa de grande e elevado. Se ele tivesse pensado somente em si, como aconteceu com o Góes Monteiro, o Getúlio, o Juarez e tantos outros, seria a estas horas general de Exército brasileiro e, quiçá, ministro da Guerra. Em 1930 não lhe faltaram oferecimentos os mais sedutores. A tudo resistiu, porém, para ficar fiel às suas ideias, erradas e funestas, é verdade, mas adotadas e seguidas com rara sinceridade.
(2) DIGO NÃO SEMPRE A TODA E QUALQUER DITADURA (SOBRE A DITADURA MILITAR DE 1964 A 1985):
Com a revolução de março de 1964, o que ontem era apenas uma mera ameaça se transformou numa cruel realidade, pois a soberania nacional foi frontalmente ferida com as indiscriminadas cassações de mandatos legislativos e a ascensão de um militar à presidência da República e, desde então, vem o Legislativo lutando pela restauração do regime democrático.
A pregação da verdade é necessária, sobretudo para aqueles que, fiados na força brutal das armas, fecham o ouvido às palavras de advertência, como as que, em vão, tenho dirigido aos militares. As Forças Armadas têm de ser subordinadas ao Poder Civil, para que não mergulhem o país no despotismo, fonte inevitável de convulsão, que as destruirá e, com elas, as tradições cristãs da terra de Santa Cruz.
Alguns políticos protestam quando digo que estamos sob uma ditadura militar disfarçada, alegando que temos Congresso e uma Constituição que está sendo respeitada pelo Poder Executivo. É inacreditável, porém, que homens inteligentes e cultos utilizem tal argumento. A Constituição que está aí foi imposta sob ameaça a um Congresso Nacional, despojado de sua soberania. E esse Congresso, que votou semelhante constituição, foi fechado pelo marechal Castelo Branco e teve seu recinto invadido por soldados do Exército, sob o comando do coronel Meira Mattos.
Por sua vez, o marechal Costa e Silva estabeleceu uma hegemonia e preponderância absolutas do Executivo sobre o Congresso. Além disso, o Executivo, dirigido por um militar que tem o apoio integral dos chefes militares do país, está armado de todos os poderes que lhe permitirão, de um instante para outro, fechar jornais, tirar do ar emissoras de rádio e televisão e estabelecer a censura sobre a palavra dos oposicionistas.
Só sei que a situação do Brasil é inequivocamente patológica porque os militares, de posse das armas que a nação lhes deu para a sua defesa, teimam em proscrever da vida pública líderes populares do porte de JK e Carlos Lacerda. Só haverá democracia no Brasil quando estes dois homens públicos puderem comparecer à praça pública em todos os recantos da pátria, pleiteando o voto dos seus concidadãos.
Eu estava no hotel quando chegou o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Goiás: "Doutor Sobral, fui chamado pelo secretário de segurança de Goiás e depois encontrei-me com o chefe da Polícia Federal. Pediram que eu viesse ao senhor perguntar se irá fazer alguma crítica ao Ato ontem editado". "Me dê sua palavra de honra de que a nossa conversa não passará daqui – disse-lhe". "Dou". "Se eu fizer alguma crítica, a festa acabará. Apagam a luz, prendem uma porção de gente, vai ser o diabo. Não quero estragar a festa de vocês. Mas você me deu sua palavra e agora está no seu dever ir dizer a eles que achei essa pergunta da maior petulância. Não devo explicações a ninguém. Diga isso a eles".
Às três horas da tarde apareceu no hotel um personagem importante da vida política do estado para me dizer: "O senhor vai ser preso. A sua ordem de prisão é certa. Não queremos que isso aconteça aqui. Daqui a meia hora meu filho virá te buscar para te mostrar a cidade. Na realidade irá levá-lo para o começo da cidade onde está um automóvel à sua espera com o melhor motorista daqui. Ele conhece todos os atalhos, o senhor não deve sair pela estrada larga. Ao mesmo tempo haverá homens aparelhados para o que der e vier. O senhor será acompanhado por gente capaz".
Nenhum desses rapazes que me elegeram como paraninfo me conhece. Nunca os vi nem nunca me viram. Evidentemente que se me escolheram como paraninfo foi em virtude do meu passado. Vou dar agora uma lição de covardia para eles? De maneira nenhuma! Muito bem, às sete e meia bateram na porta. Goiânia é muito quente e estava um calor tremendo, de modo que eu estava inteiramente à vontade só de mangas de camisa, de chinelos, sem meias e uma calça daquelas pra andar dentro de casa. Bateram à porta, e eu disse: "Entre". A pessoa entrou e bateu a porta contra a parede, evidentemente para que eu visse os seis homens que estavam encostados na parede fronteira. Chegou para mim e disse: "Sou o major Tal". Abriu o paletó e eu li: Chefe de Polícia de Goiás. Eu disse: "E daí?" "Recebi ordens do presidente da República e transmito essas ordens ao senhor. Me acompanhe". "Meu amigo, o senhor se diz major. Se o presidente da República lhe der ordens é natural que o senhor obedeça. O senhor é major e está sujeito a isso. Eu não, eu sou paisano. Acompanho coisa nenhuma! Não seja atrevido!" Então ele disse pros homens: "Prendam-no". Dos seis homens lá fora, quatro entraram e me agarraram. "Vocês me arrastam, porque não vou".
(3) POR QUE SÓ OS MILITARES SE CONSIDERAM PATRIOTAS ACIMA DO BEM E DO MAL NO BRASIL?
O coronel durante a minha prisão na Polícia do Exército em Brasília, em 1968, questionou-me: "O senhor é patriota?" Eu lhe disse: "Engula! Sou muito mais patriota do que o senhor, que vive à custa do Tesouro Nacional pra fazer essa violência! Isto é que é falta de patriotismo!". "Ah o senhor vive soltando comunistas” – salientou o coronel. Sobral retrucou: "O senhor chegou a esta idade e a este posto sem saber que advogado não solta ninguém? O advogado postula, quem solta é o juiz. Aprenda a lição!"
O coronel, irritado, bradou "tirem esse homem daqui". Eu, sem perder o panache, retruquei: "Tirem não, eu é que não lhes dou a honra de ficar aqui".
Tempos depois um oficial me procurou, trazendo meu colete, paletó, calça do terno, meias, sapatos e sua maleta. O oficial mencionou que haviam encontrado dinheiro no bolso do colete e me pediu para que contasse para ver se estava tudo em ordem. Eu respondi: "vocês são brutais, violentos, truculentos, mas não são ladrões. Não vou conferir".
O coronel comandante do quartel anunciou que às dez horas da noite voltaria para debater a atuação do Exército em face da situação brasileira. Pontualmente lá estava de volta o coronel para sua palestra e assim iniciou a sua fala: "O Exército tem o direito e o dever de dirigir a nação porque é quem conhece os problemas brasileiros, ele é que estava a par desses problemas e sabe como resolvê-los". Enfim, começou a dizer umas coisas absurdas. Aquilo foi me irritando. Quando ele disse "Vamos fazer aqui uma democracia à brasileira", interrompi: "Tenha paciência. Não existe democracia à brasileira. Existe é peru à brasileira".
(4) O QUE REPRESENTA O MOVIMENTO DAS "DIRETAS JÁ!"? (SOBRE A LUTA PELA REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL):
São movimentos cívicos, que, de maneira inteiramente pacífica, sem o mais leve incidente, e rigorosamente dentro da lei, se vêm realizando em várias cidades importantes do país, no centro, no norte e no sul. São comícios em que cidadãos patriotas, ordeiros, trabalhadores, comparecem em locais públicos, designados pelas autoridades competentes, para apoiar, com a sua presença ostensiva e calma, mas vibrante de entusiasmo, a voz daqueles compatriotas que pedem, enérgica, mas respeitosamente, seja obedecido, na iminente escolha do futuro presidente da República, o categórico preceito, que a Constituição impõe, soberanamente no parágrafo primeiro do artigo primeiro: "todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido".
Referência:
SCARLERCIO, Márcio. Heráclito Fontoura Sobral Pinto: toda liberdade é íngreme. São Paulo: Insight Comunicação, 2014. Disponível em: