PRÁTICAS PEDAGÓGICAS ADAPTADAS À REALIDADE LOCAL NOS PRIMÓRDIOS DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA: OS JESUÍTAS MANUEL DA NÓBREGA E ANTÔNIO ANCHIETA E A CATEQUIZAÇÃO DOS INDÍGENAS NA COLÔNIA

Por LUIZ ALVES DE MATTOS/ SERAFIM LEITE/ ALFREDO BOSI
(1) O realismo pedagógico de Padre Manuel da Nóbrega (Por LUIZ ALVES DE MATTOS)
O plano de instrução elaborado por Manuel da Nóbrega para os indígenas continha aspectos de realismo pedagógico, pois levava em conta as condições específicas da colônia. Além de um plano de instrução para os indígenas do sexo masculino, Nóbrega também elaborou um 'projeto de educação para o sexo feminino' que, entretanto, não teve acolhida na Metrópole, que, afinal, só iria sancionar a criação de escolas femininas para a cidade de Lisboa em 1815.
A principal estratégia utilizada para a organização do ensino, tendo em vista o objetivo de atrair os 'gentios', foi agir sobre as crianças. Para isso se mandou vir de Lisboa meninos órfãos, para os quais foi fundado o Colégio dos Meninos de Jesus da Bahia e, depois, o Colégio dos Meninos de Jesus de São Vicente. Pretendia-se, pela mediação dos meninos brancos, atrair os meninos índios e, por meio deles, agir sobre seus pais, em especial os caciques, convertendo toda a tribo para a fé católica.
Além disso, Nóbrega esteve atento à necessidade de prover as condições materiais para a construção e a manutenção das instituições jesuítas de instrução no Brasil Colônia, o que implicava suprir os víveres que envolviam a criação de gado e o cultivo de alimentos como a mandioca, o milho, o arroz, a produção de açúcar, de panos e, para realizar regularmente essas tarefas, a aquisição e manutenção de escravos. Essas ideias eram consideradas à luz das condições de sua implementação na nova terra conquistada. Como ideias pedagógicas se encarnavam, assim, na realidade da colônia, assumindo em Nóbrega, dominantemente a forma da organização dos meios considerados adequados para se colimarem os fins preconizados: a sujeição dos gentios, sua conversão à religião católica e sua conformação disciplinar, moral e intelectual à nova situação. Com efeito, Nóbrega entendia que era 'bem que os índios ficassem sujeitos e medrosos e dispostos para agora receber o Evangelho, e a doutrina de Cristo". Portanto, de acordo com essa 'pedagogia missionária', a sujeição dos índios precede a conversão, sendo condição necessária de sua eficácia.
(2) Os reflexos do excesso de realismo pedagógico nos bens materiais da Companhia de Jesus e os desentendimentos com os colonos (Por SERAFIM LEITE)
As cartas do Padre Manuel da Nóbrega revelam o alto grau de envolvimento dos jesuítas com as questões materiais. Para manter os seus planos de instrução e catequese na colônia, era necessário administrar bens materiais. Aliás, esses bens eram considerados divinos, pois eram condição para a realização do projeto de cristianização, concorrendo todas as ações, materiais e espirituais, para a maior glória de Deus, conforme o lema da ordem: ad maiorem Dei gloriam.
Os inacianos foram constituindo, a partir dos favores e proteção da Coroa e doações de particulares, um imenso patrimônio que incluía, além de colégios, seminários e igrejas, casas de aluguel, terras de cultivo, fazendas, engenhos, currais e, como agente produtores em todas essas propriedades, considerável número de escravos. Na administração desses bens, os religiosos portavam-se de forma semelhante aos agentes econômicos leigos. Os jesuítas gerenciavam uma grande empresa moderna, conforme a lógica dos latifúndios monocultores. E, como o principal da produção se destinava ao mercado europeu, eles estavam atentos às oscilações das cotações do açúcar, buscando redirecionar a produção para outros produtos agrícolas e aplicando as receitas na compra de propriedades para arrendamento, demonstrando sintonia com as regras do jogo do capitalismo em ascensão. Concorriam, pois, com os empreendedores seculares em condições vantajosas, pois, além de contar com frequentes doações, com os favores reais e isenção de tarifas, desfrutavam da mão de obra gratuita dos índios reunidos em aldeamentos dirigidos pelos jesuítas. Ato contínuo, passaram a ser acusados pelos empreendedores seculares de concorrência desleal, de exploração dos indígenas e de serem lesivos aos interesses da Coroa.
Essas acusações assumiram características mais agudas nas capitanias no Norte, então reunidas sob o estado do Grão-Pará e Maranhão, cujo governador era Francisco Xavier de Mendonça Furtado, nomeado por seu irmão, Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal. Especialmente para essa região foi traçada a 'política dos diretórios', mediante lei decretada por Carvalho e Melo em 3 de maio de 1757. Por essa política determinou-se o uso do português como língua obrigatória nas comunidades rurais e pelas populações indígenas e procurou-se transformar os índios em colonos, como mão de obra assalariada, visando a garantir a ocupação do solo e a defesa do território português. Para tanto foram também instituídos governos leigos para substituir o controle indígena até então efetuado por religiosos, em especial os jesuítas.
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador do estado do Grão-Pará e Maranhão descreve, em suas cartas ao seu irmão, o Marquês de Pombal, as vantagens comerciais que os religiosos tinham em relação aos seculares. Em carta de 21 de novembro de 1751, calculando as taxas de imposto pagas por estes, chega ao total de 80%, enquanto os religiosos eram isentos de todas as taxas. Além disso, relata as usurpações que os padres empreendiam contra a liberdade dos índios; a posse dos bens situados nas terras em que eles moravam; a venda das drogas que, por ordem deles, os índios iam buscar no sertão; e a venda das carnes e couros e dos peixes obtidos com o trabalho dos mesmos índios. Não obstante todas as denúncias, os jesuítas obstinavam-se em suas práticas e ousadamente se recusavam a cumprir as bulas e ordens papais, assim como as determinações reais.
Ao quadro econômico juntou-se a questão política das terras missioneiras, quando as coroas de Espanha e Portugal se voltaram conjuntamente contra os jesuítas. Por um acordo de 1725 que previa o casamento do herdeiro do trono espanhol, Dom Fernando, com Dona Maria Bárbara de Bragança e de Dom José, herdeiro do trono português, com Dona Mariana Vitória de Bourbon, o que se efetivou em 1729, as duas Coroas uniram-se. E, em 1750, mesmo ano em que ascendeu ao trono Dom José I, celebrou-se o Tratado de Madri, que aboliu o Tratado de Tordesilhas e dividiu as colônias da América entre Portugal e Espanha conforme o princípio do Uti Possidetis, isto é, de acordo com o domínio efetivo dos territórios. Estando contra os termos do Tratado de Madri, os jesuítas indispuseram-se com as duas Coroas. O cumprimento do Tratado esbarrou na resistência de cerca de cem mil índios cristianizados das missões guaranis, vencida pela força das armas.
As questões econômicas do interesse dos colonos e política do território conduziram a um conflito insolúvel entre a Companhia de Jesus e a Coroa portuguesa, culminando na expulsão decretada dos jesuítas do Brasil em 1759.
(3) Antônio Anchieta e os métodos e procedimentos pedagógicos de catequese indígena no contexto da Contrarreforma (Por ALFREDO BOSI)
Como hábil conhecedor de línguas, dominando perfeitamente o espanhol, seu idioma nativo, o português que aprendeu ao se radicar em Coimbra e estudar no Colégio dos Jesuítas e o latim, do qual foi estudante dedicado e destacado, Anchieta logo veio a dominar a "língua geral" falada pelos índios do Brasil, cuja gramática organizou para dela se servir no trabalho pedagógico realizado na nova terra.
Para realizar seu trabalho pedagógico, Anchieta utilizou-se largamente do idioma tupi tanto para se dirigir aos nativos como aos colonos que já entendiam a língua geral falada ao longo da costa brasileira. Para tanto produziu uma poesia e um teatro cujo correlato imaginário é um mundo maniqueísta cindido entre forças em perpétua luta: Tupã-Deus, com sua constelação familiar de anjos e santos, e Anhangá-Demônio, com a sua corte de espíritos malévolos que se fazem presentes nas cerimônias tupis. Assim, um dualismo ontológico inteiramente estranho à visão de mundo indígena é o que irá presidir a construção de uma concepção totalizante da vida dos índios produzida pelos colonizadores representados pelos seus intelectuais materializados na figura dos jesuítas.
O referido dualismo atravessa recorrentemente o teatro de Anchieta, manifestando-se nitidamente nos autos por ele redigidos. De 1564 até a sua morte, Anchieta escreveu aproximadamente vinte autos, o que corresponde à quase totalidade das peças jesuíticas do período. Os autos de Anchieta (Na festa de São Lourenço, Auto da pregação universal, Na vila de Vitória) constituem alegorias do bem contra o mal em que se condenam os gestos e os ritmos, isto é, a liturgia tupi enquanto ação coletiva e sacral, vista pelo colonizador como resultado dos poderes dos espíritos maus tentando os membros da tribo: nos autos de Anchieta o Mal vem de fora da criatura e pode habitá-la e possuí-la fazendo-a praticar atos-coisas perversos, angaipaba.
Assim, para os jesuítas, a religião católica era considerada obra de Deus, enquanto as religiões dos índios e dos negros vindos da África eram obra do demônio. Eis como se cumpriu, pela catequese e pela instrução, o processo de aculturação da população colonial nas tradições e nos costumes do colonizador.
Referências:
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000, v. II, t. I.

MATTOS, Luiz Alves de. Primórdios da educação no Brasil. Rio de Janeiro: Aurora, 1958.



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