REFORMA COUTO FERRAZ (1854), O ESBOÇO DE UM SISTEMA NACIONAL DE ENSINO E O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DO ENSINO ELEMENTAR

(Qual foi a primeira legislação educacional no Brasil independente que esboçou um sistema nacional de ensino e estabeleceu a obrigatoriedade da frequência das crianças no ensino elementar com responsabilização jurídica em caso de descumprimento?)

Por ANDRÉ PAULO CASTANHA
O ministro do Império Luiz Pereira do Couto Ferraz baixou o Decreto n.º 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, que aprovou o "Regulamento para a reforma do ensino primário e secundário do Município da Corte". Esse regulamento é um minucioso documento composto de cinco títulos. Os títulos primeiro, terceiro, quarto e quinto estão constituídos, cada um, por um único capítulo tratando, respectivamente, "da inspeção dos estabelecimentos públicos e particulares de Instrução primária e secundária", "da Instrução pública secundária", "do ensino particular primário e secundário" e "das faltas dos professores e diretores de estabelecimento públicos e particulares". Diferentemente, o título segundo, que trata "da Instrução pública primária", compõe-se de três capítulos versando respectivamente sobre as "condições para o magistério público; nomeação, demissão", "os professores adjuntos"; substituição nas escolas" e "as escolas públicas; suas condições e regime". No conjunto dos temas tratados há um destaque para a instrução pública primária.
Embora o regulamento esteja dirigido ao município da Corte, zona de atuação direta do ministro do Império, a Reforma Couto Ferraz contém normas alusivas, também, à jurisdição das províncias. Assim, além do efeito-demonstração e do caráter de modelo que, durante todo o Império, a legislação do município da Corte teve para as províncias, o Regulamento de 1854 explicitamente buscava alcançar a instrução pública provincial, como se vê no parágrafo 5.º do artigo 3.º, que estipula como uma das incumbências do inspetor geral "coordenar os mapas e informações que os Presidentes das províncias remeterem anualmente ao Governo sobre a instrução primária e secundária, e apresentar um relatório circunstanciado do progresso comparativo neste ramo entre as diversas províncias e o município da Corte, com todos os esclarecimentos que a tal respeito puder ministrar".
Outro aspecto característico desse Regulamento baixado em 1854 refere-se à adoção do princípio da obrigatoriedade do ensino. O artigo 64 determina uma multa de 20 mil a 100 mil réis aos pais ou responsáveis por crianças de mais de 7 anos que a elas não garantisssem o ensino elementar, dobrando-se a multa em caso de reincidência, à vista de verificação feita a cada seis meses. Esse aspecto associado à tarefa de coordenação atribuída ao inspetor geral dos estudos, extensiva a todas as províncias do Império, permite-nos considerar que a ideia de um sistema nacional de ensino começa a delinear-se mais claramente a partir dessa Reforma.
Quanto à concepção pedagógica que orientou a Reforma Couto Ferraz, pode-se observar que, pelo aspecto administrativo, essa concepção se revela centralizadora, como o atesta o papel atribuído ao inspetor geral ao qual se encontram hierarquicamente subordinados os delegados de distrito.
Quanto às finalidades da escola, defendia a difusão de conhecimentos mínimos a todos os habitantes do país, o que trazia como colorário: obrigatoriedade aos "pais, tutores, curadores ou protetores que tiverem em sua companhia meninos maiores de 7 anos" de garantirem "o ensino pelo menos de primeiro grau" (artigo 64), implicando, por consequência, a obrigatoriedade, para as crianças, de frequência às escolas. Mas, se ditos conhecimentos deveriam difundir-se a todos os habitantes, deve-se entender que se restringia a todos os habitantes "livres", pois os escravos estavam explicitamente excluídos, uma vez que, nomeados no parágrafo 3.º do artigo 69, estavam entre aqueles que "não serão admitidos à matrícula, nem poderão frequentar as escolas" (Note-se aqui um importante aspecto histórico que comprova e ajuda a entender o racismo estrutural no acesso à educação observado até os dias atuais).
Do ponto de vista da organização dos estudos, previa-se: (a) uma escola primária dividida em duas classes: a primeira compreenderia escolas de instrução elementar, denominadas escolas de primeiro grau; a segunda corresponderia à instrução primária superior, ministrada nas escolas de segundo grau; (b) uma instrução secundária ministrada no Colégio Pedro II, com a duração de sete anos, e nas aulas públicas avulsas, consagrando, portanto, a coexistência dos dois modelos então em vigor; (c) os alunos seriam agrupados em turmas, adotando-se, portanto, a seriação e o ensino simultâneo.
A organização do ensino tinha por base um currículo elementar compreendendo "a instrução moral e religiosa, a leitura e escrita, as noções essenciais de gramática, os princípios elementares de aritmética, o sistema de pesos e medidas do município" (artigo 47), a serem desenvolvidos nas escolas primárias de primeiro grau.
Esse currículo básico seria enriquecido nas escolas primárias de segundo grau com: "o desenvolvimento da aritmética em suas aplicações práticas, a leitura explicada dos Evangelhos e notícias da história sagrada, os elementos de história e geografia, principalmente do Brasil, os princípios das ciências físicas e da história natural aplicáveis aos usos da vida". Prosseguiria, ainda, com "a geometria elementar, agrimensura, desenho linear, nomeações de música e exercícios de canto, ginástica, e um estudo mais desenvolvido do sistema de pesos e medidas, não só do município da Corte, como das Províncias do Império, e das Nações com que o Brasil tem mais relações comerciais".
No que se refere à formação e contratação de professores, o Regulamento de 1854 dedica o capítulo II, do Título II. Propõe contratar, por concurso geral aberto aos discípulos maiores de 12 anos de todas as escolas públicas, docentes auxiliares. Os que se distinguissem nesse concurso comporiam uma lista da qual o governo faria a escolha para nomear os adjuntos. Estes ficariam "adidos às escolas como ajudantes e para se aperfeiçoarem nas matérias e práticas do ensino" (artigo 38). Nessa condição passariam por um "triênio de habilitação" (artigo 40), sendo examinados a cada ano. Os que obtivessem resultado desfavorável nos exames seriam "eliminados da classe de adjuntos" (artigo 39). Já aqueles com resultado favorável, uma vez aprovados no exame do terceiro ano, permaneceriam como adidos, podendo o governo designar, "dentre os maiores de 18 anos, aqueles que devem substituir os professores nos seus impedimentos". E poderiam, também, ser "nomeados professores públicos nas cadeiras que vagarem" (artigo 41), dispensando-se as formalidades previstas nos artigos 17 e 20, que estipulavam as exigências para admissão de professores sem passagem pela categoria de adjunto. Há, portanto, um entendimento do ensino estreitamente ligado à prática.
Referência:
CASTANHA, André Paulo. Edição Crítica da Legislação Educacional Primária do Brasil Imperial: a legislação geral e complementar referente à Corte entre 1827 e 1889. Francisco Beltrão; Campinas: UNIOESTE; Navegando Publicações, 2013.



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