Coronel Alberto Brilhante Ustra, pseudônimo Dr. Tibiriçá: A biografia e os discursos de um torturador - Reflexão crítica sobre um dos personagens mais facínoras da História do Brasil

(Fatos históricos sobre o regime militar no Brasil de 1964 a 1985 que não devem ser esquecidos)

Por Magali Simone de Oliveira e Maria Magda Lima Santiago
É importante lembrar que, oficialmente, o coronel Ustra foi o primeiro militar a ser reconhecido pela justiça brasileira como torturador. Há um temor de que o discurso presente nas memórias desse militar possa ser entendido como uma reconstituição legítima do que teria sido a vida militar e o governo dos presidentes militares, contrariando boa parte das informações que levaram a justiça a classificá-lo oficialmente como torturador. O discurso de apoio de Jair Bolsonaro ao coronel, alia-se a algumas ações, já adotadas pela extrema direita, que trazem para a contemporaneidade práticas e discursos comuns à ditadura, como a perseguição às universidades e escolas públicas.
Em uma de suas declarações, Jair Bolsonaro disse ter orgulho "da crueldade e do pavor" que o coronel Ustra, também conhecido como Dr. Tibiriçá, causava aos militantes por ele torturados, em especial à ex-presidenta Dilma Rousseff (PT – Partido dos Trabalhadores), que sofreu impeachment em 2016, e que foi uma das vítimas deste militar, como afirma matéria veiculada na Rede Brasil Atual, intitulada "Bolsonaro homenageia torturador em seu voto pelo impeachment". Posteriormente, Bolsonaro, ainda em 2016, quando era parlamentar, à época no PSC-RJ (Partido Social Cristão), ao responder à Comissão de Ética da Câmara Federal, declarou: "Ustra é um herói" – quando foi avaliada a possibilidade de cassar seu mandado por falta de decoro. Mas, de acordo com reportagem veiculada no portal G1, intitulada "Conselho de Ética arquiva processo de Bolsonaro por homenagem à Ustra", não houve consequências.
A primeira vez que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra escreveu um livro de memórias foi em 1987, pouco antes de perder o cargo de adido militar no Uruguai, após ser denunciado ao ex-presidente José Sarney (PMDB) pela então deputada federal Beth Mendes (PT). Ela o reconheceu como o homem que a torturou durante o período em que esteve presa nos porões do DOI-CODI, por ele comandado. Este episódio é citado por Ustra (2006) em sua segunda autobiografia intitulada "A Verdade Sufocada: A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça", publicada em 2006.
Nele, Ustra relata a prisão da então atriz Beth Mendes, que teria integrado os quadros da VAR-Palmares, (Vanguarda Armada Revolucionária, grupo que atuou na clandestinidade combatendo a ditadura de 1964-1985) com o codinome "Rosa", na primeira semana de agosto de 1970. De acordo com Ustra (2006), em seu depoimento à justiça em março de 1971, a atriz teria dito estar arrependida de ter participado das atividades naquela corporação. No entanto, em 19 de agosto de 1989, Beth Mendes o teria denunciado ao presidente José Sarney, como foi mencionado, dizendo ter sido torturada por ele e pedindo sua exoneração do cargo de adido militar no Uruguai. A denúncia, veiculada em todos os jornais naquela época, segundo o coronel, teria manchado seu currículo frente à sua família, aos seus amigos e aos conhecidos.
Assim, em 2006, o oficial retoma o episódio em que foi denunciado por Beth Mendes, justificando que escreveu para contar "a todos os que repudiam a violência, amam a paz e a verdade" (USTRA, 2006, p. 20) – justificativa que é um paradoxo se comparada às acusações das vítimas de tortura deste militar. O coronel afirmou, em seu livro, estar relatando não só a verdade sobre a sua atuação no DOI-CODI, mas também denunciando "calúnias" que ele e os presidentes do período militar estariam sofrendo. Na interpretação de Ustra (2006), a história foi distorcida pelos "derrotados"; ou seja, os militantes de esquerda e todos aqueles que apoiaram o governo de João Goulart (PTB – Partido Trabalhista Brasileiro), deposto no golpe de 1964, que levou o país à ditadura.
Ustra (2006) conta que, em 1970, quando ainda era major e servia na 2ª Seção de Informações do Quartel General do II Exército, pouco antes de assumir o DOI-CODI, ele e sua mulher, Maria Joseíta Silva Brilhante Ustra, foram "obrigados" a fazer "sacrifícios", por causa da intensificação "da ação terrorista" e por seu "espírito de corpo".
Considerado torturador pela justiça, classificação essa balizada em documentação que demonstra que esse coronel foi um dos mais cruéis torturadores de toda a ditadura – acusado de práticas como estupro, de inserir ratos nos órgãos genitais de suas vítimas, de simular atropelamentos ou tiroteios dos militantes assassinados durante as sessões de sevícias por ele aplicadas, entre outras –, Ustra (2006) nega todas as acusações a ele imputadas. Ele diz, em sua biografia, que os militantes não foram torturados nos porões do DOI-CODI, por ele comandado, mas que foram mortos em trocas de tiros com os agentes da repressão ou ainda que se suicidaram.
Nesse contexto, segundo esse coronel, a maioria dos detidos levados para interrogatório eram "orientados a matar-se por seus colegas para evitarem confessar alguma coisa". E ainda: "Desses mortos, dois, segundo minhas pesquisas, suicidaram-se no DOI-CODI: o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manuel Fiel Filho. Os demais morreram sob combate" (USTRA, 2006, p. 301). Peritos e testemunhos da época, no entanto, atestam a impossibilidade do autoextermínio de ambos.
Além disso, o coronel, citando o escritor Olavo de Carvalho, destaca teorias da época da ditadura que estão em voga atualmente, como a tese de que professores usariam a sala de aula para fazer "doutrinação socialista nas escolas". Tal pensamento foi usado pelo governo de Bolsonaro para justificar a perseguição a docentes de todo o país.
Em 2013, quando o coronel Ustra depôs na Comissão da Verdade, duas versões da história se confrontaram. Depois de perder na Justiça a ação movida pela família Teles, referente à acusação de tortura, reviu algumas de suas antigas vítimas. Só que dessa vez elas é que queriam fazê-lo confessar seus crimes. Ele se recusou. "Não converso com terroristas".
Sobre essa negativa, Adriano Diogo comentou, acrescentando o seu relato: "Ele (Ustra) está usando o princípio democrático. Pode se recusar a falar: estamos em uma democracia. Mas a nenhuma de suas vítimas ele deu este direito. Ele foi o maior verdugo da ditadura. Eu cheguei à Oban no dia 23 de março de 1973. Eles tinham acabado de matar um colega de classe, Alexandre Vannucchi Leme. O sangue dele estava sendo tirado da cela naquela hora. Ele (Ustra) está muito nervoso. Tirou meu capuz e falou: acabei de mandar o 'Minhoca' (como eles chamavam o Alexandre Vannucchi) para a Vanguarda Popular Celestial. E você vai ser o próximo. Usando muitos palavrões, ele perguntou: você sabe o que é um Magnun? Pois bem. É com este revólver que eu vou te matar. Terrorista! Bandido! E por aí afora!"
A tortura física, segundo Diogo, começou pouco depois. Durou 14h no primeiro dia. "Eu cheguei lá às duas horas da tarde. Eu fui torturado na cadeira do dragão das 14h às 4h da manhã, com o Ustra comandando", contou, referindo-se aos choques elétricos aos quais os prisioneiros eram submetidos para fornecer informações. Também torturada, a ex-militante Amelinha Teles conta, no vídeo veiculado pelo blog Vi o Mundo que, junto com sua família, conseguiu na Justiça que Ustra fosse o primeiro militar da ditadura a "ser oficialmente classificado como torturador" pelo Estado brasileiro. Ela, o marido, a cunhada grávida e os filhos ainda crianças foram torturados por esse oficial no início da década de 1970. "[....] Me deixaram lá no pátio, e levaram o Cézar (marido) e Daniele (cunhada). Eu vi um homem gritando. Eles espancavam tanto o César e a Daniele. Aí, eu perguntei para ele (Ustra): como que é que o senhor deixa estas pessoas serem machucadas deste jeito? Ele me disse: foda-se, sua terrorista. Me deu um safanão na cara, me jogou no chão, no pátio. E disse assim: pega essa mulher, pega essa mulher. Aí, eles me agarraram, me conduziram para a sala de tortura e eu passei a ser torturada. De vez em quando, ele passava lá. Ele passava lá para gritar, para mandar intensificar a tortura, para dar safanões. Fui para a cadeira de dragão. Fui para o pau de arara, para a cadeira de dragão, toda a tortura é nua. E na cadeira de dragão, você fica lá sentada, e, aí, amarrada, molhada, amarrada com fios descascados e levando choques no corpo inteiro, na boca, nos ouvidos nos seios, no umbigo, na vagina, no ânus, porque eles colocam os fios embaixo de você, nas pernas, nos braços".
Além de levar socos, choques elétricos, ficar no pau de arara e sofrer outras torturas, sempre despida, Amelinha contou que Ustra levou os filhos dela, Janaína, de cinco anos, e Edson, de quatro anos, para os porões da 36ª delegacia do DOI-CODI para assisti-la ser torturada, levando choques na "cadeira do dragão": "Isto eu não vou me esquecer. Não vou me esquecer nunca. Meus filhos queriam me abraçar. Meus filhos queriam falar comigo. E, eu, amarrada, não podia falar com eles. Eu toda machucada. Em 2005, nós entramos com uma ação pedindo que o Estado brasileiro declare o coronel Ustra como torturador. E nós conseguimos. Na primeira instância, aqui na 23ª vara, civil, aqui de São Paulo, e, depois, ele entrou com recurso no Tribunal de Justiça, mas o Tribunal de Justiça confirmou a sentença dada em primeira instância, então, até o momento, o Ustra foi declarado torturador pelo Estado brasileiro".
Outro depoimento que chamou a atenção foi o de Ivan Seixas, uma das vítimas de Ustra ouvidas pela Comissão da Verdade. Ele contou ter sido torturado junto com o pai na cadeira do dragão e no pau de arara: "[...] minha mãe ouviu alguma coisa naquela hora. Ela estava na sala de baixo (se referindo ao momento em que o pai foi morto por pauladas) e ela ouviu quando os caras disseram que ele deveria viver mais tempo... mas ele ficou em silêncio, não respondia mais..(sobre as torturas) Tomei choques no pé e outros na mão, nas orelhas e nos dedos das mãos. O choque pega o sistema nervoso central e faz você ficar tão desnorteado que você grita você fica muito confuso. Dói. Você grita! Ah! Ah! Ah! Você grita, grita, grita, porque você se desconserta totalmente. A ideia é desconsertar o preso, e, o próprio choque provoca uma dor; então você grita. Você fica com o sistema nervoso bagunçado e também pela dor. Foram duas máquinas ao mesmo tempo, o dia inteiro, choque, no dia seguinte, já não... Era uma crueldade muito grande. Agora, o pau de arara ele cria problema nas pernas. Você fica sem andar. A pessoa perde o movimento das pernas. É alguma coisa, muito forte. Depois ele (Ustra) me bateu aqui (mostra as costas). Quebrou uma vértebra, com um cano".
Ivan ainda classificou Ustra como "psicopata" por levar a mulher e a própria filha, Mariana, na época com quatro anos, para assistir às torturas que aplicava aos presos. "Um cara que faz isso é um desequilibrado", contou Seixas.
Ao contrário de países como Argentina, Chile e Uruguai, que julgaram e condenaram os responsáveis por crimes contra a humanidade durante a ditadura que sofreram nas décadas de 1970, decisão do STF brasileiro considerou que a Lei da Anistia (1979) não poderia ser revogada para permitir a punição dos militares que torturaram e assassinaram os militantes que estavam sob sua tutela. Tal sentença impediu, em parte, a possibilidade de os militantes e familiares de mortos e desaparecidos assistirem à condenação dos responsáveis por tais crimes. E também que pudessem recuperar os corpos de seus entes queridos. Como durante o regime ditatorial a imprensa não pôde noticiar crimes de corrupção cometidos pela cúpula do governo militar, houve o que Orlandi (2007) chama de "silenciamento constitutivo".
Nesse contexto, como os crimes dos militares não puderam ser noticiados pela imprensa por causa da censura ou do silenciamento local imposto na época pela ditadura, além de não terem sido julgados no período democrático, por decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça), boa parte da população não os conheceu. Mas viu no noticiário, a partir de 1985, a corrupção dos governos civis. Assim, ao não se condenar torturadores do governo militar, e ao se registrar casos de corrupção nos governos civis, contribui-se para forjar falsos imaginários favoráveis à premissa de que na ditadura não houve arbitrariedades. Mas num país polarizado como o Brasil contemporâneo, é preciso atenção às tentativas de reescritura da história. Portanto, faz-se mister que todos os brasileiros tenham conhecimento sobre esse período que compõe a memória do país, sobretudo os jovens, pois a verdade (sufocada) pode ser a semente de um estado de exceção, brecha para a entrada oportunista de "novas" versões para uma mesma história.
Referência:
OLIVEIRA, Magali Simone de; SANTIAGO, Maria Magda Lima. A verdade sufocada: iminência de novos sentidos sobre a ditadura. In: Gláuks: Revista de Letras e Artes, jan/jun. 2019, v. 19, n. 1, p. 158-178.



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