O MASSACRE DE INDÍGENAS DURANTE A DITADURA CIVIL MILITAR: Grandes obras na Amazônia serviram de pretexto para genocídio cometido pelo regime militar por meio de bombardeios, chacinas e destruição de locais sagrados dos povos indígenas
(Fatos históricos sobre o regime militar no Brasil de 1964 a 1985 que não devem ser esquecidos)
Por Kevin Damasio (National Geographic)
Na segunda metade de 1974, o povo kinja se reunia na aldeia Kramna Mudî para uma celebração típica dos índios waimiri atroari, na margem do rio Alalaú. "Já tinham chegado os visitantes de Camanaú e do Baixo Alalaú. O pessoal das aldeias do Norte ainda estava a caminho. A festa já estava começando com muita gente reunida", escreve o indigenista Egydio Schwade, um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário, a partir dos relatos de seus alunos no curso de alfabetização na aldeia. "Pelo meio-dia, um ronco de avião ou de helicóptero se aproximou. O pessoal saiu da maloca para ver. A criançada estava toda no pátio para ver. O avião derramou como que um pó. Todos menos um foram atingidos e morreram". Quando os aldeados do Norte chegaram à aldeia, depararam-se com ao menos 33 mortos.
Esse massacre também foi contado, no idioma karib, pelo sobrevivente durante uma audiência judicial do Ministério Público Federal (MPF) realizada na terra indígena (TI), em 28 de fevereiro deste ano. Na época, esse kinja – como se autodenominam os waimiri atroari –, ainda era adolescente e lembra de ouvir apenas o barulho da aeronave. De repente, os índios atingidos pelo veneno começaram a sentir bastante calor pelo corpo. Ficaram paralisados, impossibilitados de andar, "muito doentes". Enquanto os parentes vinham a óbito, homens brancos invadiram a aldeia por terra, munidos de facas e revólveres.
Bombardeios em ataques aéreos, chacinas a tiros, esfaqueamentos, decapitações e destruição de locais sagrados eram outras formas de massacre por parte dos militares naquela reserva a partir de 1974. Tudo isso em nome do Plano de Integração Nacional (PIN) decretado pelo general Emílio Garrastazu Médici, que previa uma ocupação de 2 milhões de km2 na Amazônia. O genocídio dos waimiri atroari pela ditadura militar estendeu-se entre os anos 1960 e 1980, durante três grandes projetos dentro desta terra indígena (TI): a abertura da BR-174, a Manaus-Boa Vista; a construção da hidrelétrica de Balbina; e a atuação de mineradoras e garimpeiros interessados em explorar as jazidas em seu território.
"Acredito que o caso dos waimiri atroari é o mais emblemático por ser o mais documentado e pelas diversas formas de violência", conta o indigenista Tiago Maiká Schwade. Ele é colaborador do relatório O genocídio do povo waimiri atroari, do Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, que o pai dele, Egydio, coordenou. "Um poderio bélico militar foi usado contra um grupo de indígenas praticamente indefesos, além de casos de negligência em relação ao contato. Os depoimentos comprovam que foram utilizadas armas químicas ou biológicas para pôr em prática uma política de extermínio para desocupação do território, pelo interesse mineral. Presidente Figueiredo, hoje, é o município com a maior arrecadação de todo o estado do Amazonas, por conta da instalação de uma mineradora que aconteceu em meio a esse processo genocida".
(1) Os números do genocídio:
A Comissão Nacional da Verdade estima que ao menos 8.350 índios foram assassinados entre 1946 e 1988. As investigações apontam dois períodos distintos em se tratando de violações aos povos indígenas. Antes de dezembro de 1968, os massacres se davam mais pela omissão do Estado. Após o Ato Institucional 5 (AI-5), com a criação da Fundação Nacional do Índio (Funai), o maior responsável pelos homicídios foi o regime militar, que durou de 1º de abril de 1964 a 15 de março de 1985.
Os waimiri atroari representam ao menos 2.650, atrás apenas dos Cinta-Larga (3.500 mortes). De acordo com a Funai, a população dos waimiri atroari era de 3 mil pessoas em 1972. Em 1983, apenas 350 sobreviveram aos massacres. Em 1987, a população subiu para 420. Hoje, há aproximadamente 2 mil pessoas. O MPF, contudo, ressalta em um relatório da ação civil pública que o número de vítimas pode ser ainda maior, "considerando que as diferentes contagens do povo Kinja na ditadura atendiam determinados interesses governamentais pouco preocupados com a revelação da verdade".
Em 1917, os Waimiri Atroari conseguiram a concessão do território situado na divisa entre os estados do Amazonas e de Roraima. Permaneceram com pouco contato de não índios até a instalação dos Postos Indígenas de Atração (PIA) próximos aos rios Camanaú (1969), Alalaú (1970) e Santo Antônio do Abanari (1972). Os PIA eram parte de um plano de ação entre a Funai, o Departamento Nacional de Estradas e Rodagem, o Instituto de Terras, o Ministério da Aeronáutica e o Grupamento Especial de Fronteiras do Exército. O objetivo principal, conforme o relatório da Comissão Nacional da Verdade, era acelerar o "processo de integração [dos Waimiri Atroari] na sociedade nacional, assim como realizar trabalhos de apoio aos serviços da estrada BR-174".
Líder da equipe de atração na época da construção da BR-174, o sertanista Gilberto Figueiredo descreveu os índios como "muito desconfiados, sendo temerário qualquer passo em falso" e "em estágio dos mais primitivos". As lideranças das aldeias do Norte e do Sul demonstravam resistência às obras e eram tratadas pelo Exército como entraves para o desenvolvimento do país.
O general de brigada, Gentil Paes, assinou o seguinte ofício em 1974: "Esse Comando, caso haja visitas dos índios, realiza pequenas demonstrações de força, mostrando aos mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite".
Já o coronel Arruda, comandante do 6º Batalhão de Engenharia e Construção, disse em 1975 que "a estrada é irreversível como é a integração da Amazônia ao país. A estrada é importante e tem que ser construída, custe o que custar. Não vamos mudar o seu traçado, que seria oneroso para o Batalhão apenas para pacificarmos primeiro os índios. […] Não vamos parar os trabalhos apenas para que a Funai complete a atração dos índios".
A Funai foi criada para substituir o Serviço de Proteção ao Índio (denunciado por vários casos de omissão no Relatório Figueiredo, em 1967) e estava vinculada ao Ministério do Interior, responsável, por exemplo, pela abertura de estradas. O órgão indigenista possuía um discurso desenvolvimentista – diferentemente do que é hoje em dia. "Os Waimiri Atroari têm constituído problemas emocionais, não só no âmbito do nosso país como também no âmbito internacional", disse o então presidente do órgão, o general Ismarth de Araújo Oliveira, durante a 81ª sessão do Conselho Indigenista da Funai (CIF), em 1975. "Há uma coisa que é certa: a decisão do governo, que é irreversível, de continuar a estrada".
Raimundo Pereira da Silva era mateiro da Funai, trabalhou na abertura da BR-174 e presenciou a truculência do Batalhão de Infantaria da Selva (BIS). Ele relatou seu espanto aos pesquisadores do Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, Egydio e Maiká Schwade: "Eu fiquei impressionado porque, antes do Exército entrar, a gente via muito, muito índio. […] Depois que o BIS entrou, nós não vimos mais índios […]. Antes cansou de chegar 300, 400 índios no barraco da gente".
Os waimiri atroari representam ao menos 2.650 dentre os 8.350 indígenas assassinados pelo estado entre 1946 e 1988, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Em 1980, o Brasil foi denunciado no IV Tribunal Russell em Roterdã, Holanda, pelo genocídio dos waimiri atroari e de outras aldeias indígenas. A corte internacional concluiu que é evidente a "responsabilidade exclusiva do governo, que instalou um programa global, conscientemente genocida e etnocida na vida daqueles povos".
A BR-174 foi concluída em 1979, mas as violações continuaram. Em 1981, o general João Figueiredo desapropriou, em decreto, 30 mil hectares da parte leste do território. A região foi inundada para a instalação da Usina Hidrelétrica de Balbina. "O desmembramento da terra indígena waimiri atroari visava também ceder vastas porções do território a companhias mineradores que, desde a década de 1970, pediram autorização para prospecção mineral na área", conclui o volume II do relatório da Comissão Nacional da Verdade, assinado pela psicanalista Maria Rita Kehl. "Com o decreto de Figueiredo, as mineradoras Timbó/Paranapanema e Taboca puderam se estabelecer numa área de 526.800 hectares dentro da reserva".
As margens da BR-174 foram invadidas por posseiros e fazendeiros. Segundo a Funai, o governo do Amazonas deu aval a 338 títulos de propriedade dentro da TI, até 1981. Segundo o relatório da CNV, o governo militar ainda financiou atividades agropecuárias por meio dos programas Polo Amazônia e Proálcool.
(2) Observação:
Fica o questionamento para os apologistas e saudosistas do regime militar. Os povos indígenas também eram "subversivos", "comunistas" e "antipatriotas" para se justificar as práticas genocidas cometidas durante o regime militar de 1964 a 1985 contra eles?
Referência:
DAMASIO, Kevin. Ditadura militar quase dizimou os waimiri atroari – e índígenas temem novo massacre. Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/.../ditadura...