A NOSSA CIVILIZAÇÃO É A CIVILIZAÇÃO DO LIVRO

Por ANÍSIO SPÍNOLA TEIXEIRA
A nossa civilização é a civilização do livro e até a religião cristã é, por excelência, a religião do livro. O prelo multiplicou esse livro e difundiu a civilização pelo mundo. Enquanto o homem não chegou a essa pequena invenção que foi a impressão por tipos móveis - tão pequena que se pode perguntar: que afinal inventou Gutenberg? - o progresso humano foi lento e de certo modo estável. Mas, a diminuta alteração de Gutenberg - pois a impressão já existia antes dele na impressão de gravuras e de textos por meio de modelos de madeira ou metal, reduzindo-se a descoberta, talvez, aos tipos móveis de letras que já estaria implícita no alfabeto fonético - mudou a face da Terra. A tipografia gerou o individualismo e deu definitivo impulso à existência pessoal das criaturas, criou as culturas vernáculas, que nos deram as nações, difundiu o saber fazendo dele algo verdadeiramente universal, podendo as culturas desenvolvidas se distribuírem por todo o planeta. A aparentemente diminuta alteração do processo mecânico de produzir em série a palavra impressa e o livro deu início à universalização da máquina e com ela a indústria, ou seja, novo método de produção de toda sorte de bens de consumo, inclusive o saber, tornando-o acessível a todos e, além disto, permanentemente progressivo. Lançou o mundo num processo de mudança que não mais se interrompeu, chegando afinal a tornar viável a própria utopia com que a humanidade sempre sonhara.
A estátua de Gutenberg, que se ergue em Strasbourg, representa-o retirando do prelo uma página impressa, em que se lê: "E a luz se fez!". A sua invenção, vale a pena repetir, mal chega a constituir invenção. A imprensa já existia e sua descoberta se reduziu aos tipos móveis de composição. Mas essa modestíssima, embora engenhosa, invenção equipara-se à criação do mundo. "Fiat lux" fora a ordem, no Gênese, mas quem a executou foi Gutenberg, universalizando o saber. Não sei de maior exemplo da importância de um pequeno aperfeiçoamento tecnológico. A tipografia criou o indivíduo e o individualismo, o cidadão e as nações, a democracia e a indústria, multiplicou a cultura pela variedade das culturas nacionais, e deu à ciência, à arte e às línguas vernáculas condições de desenvolvimento inesperadas e ilimitadas. As culturas nacionais sofriam a limitação do acesso à cultura, que não é o esforço isolado de cada língua vernácula, mas o logo esforço do homem através das línguas cultas do passado e cada uma das línguas vernáculas de hoje.
Vemos, assim, que o mundo moderno chegou ao seu alto desenvolvimento nas áreas em que a continuidade da cultura humana, a partir da Antiguidade e da Idade Média, pôde ser assegurada pelo livro manuscrito das línguas cultas - o grego, o latim e o hebraico - e pelas bibliotecas, dando lugar ao florescimento da imensa cultura moderna tipográfica e industrial, que atinge seu apogeu no começo do século XX, para ser sucedida pela cultura eletrônica do nosso tempo. A tipografia foi o grande instrumento dessa transformação, sendo o seu produto específico o livro, a primeira e grande máquina de ensinar, ou seja, de acesso à cultura. O acesso a esse reservatório de cultura é condição essencial para a continuidade da cultura e para a sua renovação e progresso. O livro universalizou potencialmente a cultura existente, mas tal poder somente se iria concretizar onde fosse possível conservá-la sob forma acessível para o labor intelectual, imaginativo e criador do homem. As culturas vernáculas e nacionais isolaram e empobreceram os homens, salvo aqueles que puderam pelo livro conservar a sua riqueza e desenvolvê-la até a opulência de alguns em nossos dias.
Referência:
TEIXEIRA, Anísio Spínola. Cultura e tecnologia. Rio de Janeiro: INDOC; FGV, 1971.



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