A ESCOLA MODERNA

(CECÍLIA MEIRELES: A POETISA EDUCADORA E SIGNATÁRIA DO MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA DE 1932)

Por Cecília Benevides de Carvalho Meireles - também conhecida como CECÍLIA MEIRELES (Rio de Janeiro-RJ, 1901 - Rio de Janeiro, 1964. Trabalhou com Anísio Teixeira na Direção de Instrução Pública do Distrito Federal, sendo nomeada como diretora de um Centro Infantil. Fundou a primeira biblioteca infantil do Brasil em 1934. Foi convidada para lecionar Literatura Luso-brasileira e Técnica e Crítica Literária na Universidade do Distrito Federal, fundada por Anísio Teixeira em 1935. Foi professora e diretora no Rio de Janeiro, autora de livros escolares e dirigiu a página de educação do Diário de Notícias em 1932).
Todos os dias é tempo de se fazer o elogio da nova educação, ainda que sintamos passada a sua fase consagrativa, transformada no culto cada vez mais constante daqueles que realmente a tenham compreendido. Todos os dias brota espontaneamente do nosso entusiasmo esse elogio, pois à medida que caminhávamos por estes novos campos é que sentimos como aqui se expande sinceramente a vida e cada elemento individual pode modelar com liberdade a sua forma de modo que, no milagre das realizações posteriores, esteja cada valor em seu lugar próprio e nenhum poder fique sem aproveitamento.
Talvez a importância da escola moderna não resida tanto nas suas intenções, que, propriamente, sempre existiram na inquietude daqueles que, em passados vários, contemplaram o processo da vida e a formação humana de um ponto que lhes permitisse uma visão universal total: o que é mais curioso, o que na verdade nos interessa, pela revelação que nos faz deste instante de evolução, é a generalização que tomaram essas ideias, é a sua propagação, ou seu aparecimento simultâneo sobre diversos pontos da terra, fazendo crer numa nivelação geral de desenvolvimento, entre povos das mais diversas origens e tradições. Vemos neste momento passar para o domínio popular uma vasta quantidade de pensamentos que até aqui representavam limitadas propriedades de sonhadores e pensadores. Assistimos a esse fenômeno com admiração: e com mais admiração ainda vemos que não só essas ideias se transferem, assim, de um ambiente para outro, de um pequeno mundo individual para o grande mundo coletivo, como também não permanecem como simples ideais, antes adquirem forma, corpo, atividade, de modo a sentirmos com uma evidência indiscutível que há uma forma positiva para todas as aspirações humanas, e que o sonho não é mais que uma antecipação de realidades adiantadas.
Possivelmente, chegou-nos, a nós, os de agora, um profundo tédio de só pensar e sentir. O passado apresenta-se-nos oculto, subterrâneo, feito de mistérios e torturas como o caminho silencioso das raízes. Nosso presente conhece que seiva lhe chegou, com gostos das terras mais distantes, virtudes das profundezas mais variadas e, sobretudo, o valor dos entrecruzamentos livremente operados através desses longos caminhos.
Há ímpeto demais nessa energia que nos vem de tão longe: não cabe mais em nós contê-la dentro da nossa individualidade. Mais do que nunca sentimos uma ansiedade grande de dar. Porque recebemos demais, porque transformamos demais, também. E a nossa alegria consiste nisso: conhecermos o que trazemos, sentirmos o instante que ocupamos e as criaturas a que nos dirigimos.
Ora, nosso gesto não exprime somente transmissão. Damos-lhe um sentido de oferenda, que envolve o nosso sacrifício. Porque hoje temos de dar o que nos foi legado com todas as repercussões que essa herança tenha acordado em nós. E damo-lo com uma intenção de renúncia: para que não permaneça, mas para que se transforme. Nós, os de hoje, podemos tentar uma eternidade assim: sem o egoísmo da nossa fixação.
Que sabemos nós, de tudo quanto possamos ter aprendido, senão que a vida é uma perpétua instabilidade e que a sua forma de definição suprema é a constância de um movimento de sempre renascentes ritmos?
Do reconhecimento da marcha das aparências sobre a irrevelação invariável ficou, para os espíritos que a observaram, uma larga sede de rumos e de fins. Mas a vida, bem se vê, é uma continuidade, não é apenas uma direção. Ela está em si mesma, com as suas formações precárias, florindo como os sonhos sobre uma noite imperturbável. Mas é a mesma a natureza dessa noite e desse sonho. Entre uma e os outros opera, unicamente, a magia transfiguradora do movimento.
Nestes sucessivos cenários efêmeros que resultam da nossa própria efemeridade é preciso que não nos arroguemos nenhuma atitude irremovível, porque seria recusar-nos a seguir a correnteza natural em que, sem explicações, aparecemos. Nosso desacordo com a natural sequência nos insularia num espontâneo exílio em que não participaríamos nem da aparência transitória nem da inviolável eternidade, porque é preciso sentirmos a deslocação dolorosa de uma para possuirmos em nós o gosto profundo e absoluto da outra.
Temos que lutar todos os dias contra a inércia. Não podemos permitir que a nossa existência pare, nesta assombrosa continuidade dos acontecimentos. E, para isso, precisamos, antes de tudo, reagir contra a invasão das ideais comuns, do comodismo de certas fórmulas, servilmente aceitas, da passividade das atitudes que se ficam repetindo, pela incapacidade de tentar outras melhores, ou pelo temor de enfrentar qualquer risco.
Precisamos resistir à sugestão perigosa, ao erro do exemplo. Não há exemplos. Há experiências, realizadas em certas épocas, por certas criaturas, em certas circunstâncias. Nunca seria possível reproduzir esse exemplo, sem forçarmos a própria natureza, porque o processo da vida não permite repetições. Apenas nos podem valer essas experiências como elemento de cultura, como o histórico da humanidade que nos precedeu, e em que podemos contemplar, na alternativa de todas as variantes, a lei de movimento que imperativamente as determina.
A sucessiva destruição de teorias e doutrinas deve conduzir-nos à sinceridade e à humildade. A íntima confissão da nossa impossibilidade de resolver definitivamente os absorventes enigmas que nos cercam, em vez de dívidas e covardias, deve dar-nos o heroísmo de, verificando os fracassos já vividos, não querer constituir em dogma orgulhoso e enganoso nenhuma experiência recebida e vivida. Caminhamos para uma época sem predeterminações. Consideremos os homens que veem para essas épocas futuras libertos ainda dos preconceitos que tivemos de remover dos nossos passos. Que lhes podemos nós oferecer que não lhes venha a ser um estorvo? Que passado quereremos ser nós, para esses que ainda neste momento são apenas uma probabilidade futura? Conscientemente, tanto quanto nos é possível ser conscientes, como iremos agir sobre esse elemento misterioso que se apresenta a cada um de nós?
Neste instante em que uma claridade nova parece percorrer o mundo e uma compreensibilidade mais ampla reúne as criaturas, a escola moderna parece uma resposta a todas essas inquietações, e uma consequência dessa visão de responsabilidade e desse desejo de acertar, que nos fazem tão apreensivos.
A escola moderna é, preliminarmente, a visão do conjunto das atualidades, a sua comparação com as atualidades que se foram e as que veem. Dessa visão resulta, compreendida a situação humana, a conclusão de que, para construir a nova tentativa dos homens de hoje, em localizações futuras, é preciso partir do mais longínquo ponto inicial, daquele, pelo menos, que, nas contingências terrenas, se nos afigura o próprio começo da vida.
E é assim que nos colocamos nesta hora face a face com os homens futuros que nos virão suceder em todas as cogitações e ansiedades, e que são, por enquanto, apenas as crianças que as escolas recebem e que, num certo número de anos, os professores se obrigam a educar.
Com ser ativa, prática, viva, por excelência, não é do espírito dessa escola reduzir o indivíduo de hoje a um tipo especialmente utilitarista, material, interesseiro. Seria substituir o formalismo teórico, inaproveitável, rotineiro da escola tradicionalista do passado por um novo formalismo, talvez ainda mais perigoso.
O que a escola moderna pretende, acima de tudo, é restituir à criatura humana as suas primitivas qualidades de ânimo livre, de inteligência franca, de sentimento justo e de vontade equilibradora, reconquistando-lhe a independência de qualquer preconceito novo, pelo estímulo da sua iniciativa de observar, do seu destemor de experimentar, da sua coragem de agir, uma vez desenvolvidas, prévia e sabiamente, todas as suas faculdades, num ambiente de iniciações favoráveis.
Trabalho já difícil em teoria, sobe de gravidade na prática, pelas contingências fatais do meio, pela “rotina infantil” de que já vão as crianças impregnadas para a escola, pelos absurdos assimilados, pelos preconceitos, pela má vontade, pelo artificialismo, enfim, que as deforma e que somente a ação simultânea da família e dos professores poderá ir atenuando, para que se possa, afinal, obter essa coisa hoje impossível: o aluno isento de influxos desorientadores, capaz de receber a vida com o espírito de beleza que, dentro do ideal dos homens de hoje, a escola se esforça nobremente por lhe dar, exprimindo nessa dádiva o amor e a solidariedade intemeratos daqueles que se vão, saciados de experiência, àqueles que começam a vir, com uma nova sede, na sucessão sempre diversa, mas quase tão semelhante...
Referência:
MEIRELES, Cecília. A escola moderna. In: LÔBO, Yolanda. Cecília Meireles. Recife: Fundação Massangana, 2010, p. 77-81.




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