D. PAULO EVARISTO ARNS QUESTIONA O PRESIDENTE MÉDICI NA DITADURA CIVIL MILITAR SOBRE A VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

(TEXTO PARA A REFLEXÃO SOBRE O SENTIDO DO AMOR AO PRÓXIMO NO CRISTIANISMO)

Por D. PAULO EVARISTO ARNS (Forquilhinha - SC, 1921 - São Paulo - SP, 2016. Frade franciscano, cardeal e escritor brasileiro. Teve uma atuação pastoral voltada aos habitantes da periferia, aos trabalhadores, à formação de comunidades eclesiais de base nos bairros, principalmente os mais pobres, e à defesa e promoção dos direitos da pessoa humana. Ficou conhecido como o Cardeal dos Direitos Humanos, principalmente por ter sido o fundador e líder da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, e sua atividade política era claramente vinculada à sua fé religiosa).
Com o Presidente Médici de fato eu me encontrei diversas vezes, porque naquele tempo as autoridades sempre iam receber o Presidente da República quando ele vinha a São Paulo. Então, eu o cumprimentava. Ele me conhecia. E uma vez até andei de metrô junto com ele.
Um dia, eu precisava falar com ele, porque os Bispos do Estado de São Paulo em peso me pediram que eu transmitisse ao Médici o que estava acontecendo aqui em São Paulo. Então, eu não sabia como chegar lá, mas eu tinha uma edição muito linda da Rerum Novarum, de Leão XIII, quando começou a Renovação Cristã do Trabalho, etc. Em letras góticas, linda mesmo! Então, a pessoa que tinha confeccionado esse primoroso presente me pediu para entregá-lo ao Presidente da República. Ora, eu pensei: "Talvez seja uma possibilidade". Telefonei ao Arcebispo de Brasília e disse: "O senhor pode me arranjar uma entrevista com o Presidente Médici, para entregar um presente de Roma?". O Arcebispo respondeu: "É um pouco difícil, mas, se o senhor tiver paciência, eu arrumo isso para o senhor, porque o senhor é Cardeal, afinal. O senhor pode ir".
Então, ele me telefonou: "Está marcado para tal hora e tal dia, e o senhor faça o favor de estar aí a tempo, etc.. Mas tem que vir sozinho".
Fui sozinho para Brasília, levando aquele presente, bonito mesmo. E fui falar com ele para dizer o que estava acontecendo em São Paulo, não é? Mas entrei e imediatamente o cumprimentei. Eu me assentei no lugar que ele me designou, junto à mesa, e depois eu disse: "Presidente Médici, o senhor aceitaria um presente que foi confeccionado para o senhor, com muito gosto? É sobre o valor do trabalho, e é do Papa Leão XIII, talvez o renovador da Igreja para o século XX. Ele escreveu essa encíclica Rerum Novarum, ou seja, as novas coisas que vão acontecer". O Médici imediatamente disse: "não!" — mas com um tom tão forte que até me chocou. Parece que eu não me assusto facilmente, mas dessa vez me assustei. Aí eu disse: "Então, está bem. Desculpe, mas a pessoa que o confeccionou, confeccionou para o senhor. Seria um presente dado por Roma, através de um cardeal que o estima". Então, ele disse: "Afinal, o que o senhor está fazendo em São Paulo é contra a Revolução. De maneira que eu acho que o senhor não tem direito nenhum a isso". Eu disse: "Sr. Presidente, eu estou aqui como o Presidente de mais de 40 bispos em São Paulo. Eles me pediram, em comum. Eu vim dizer a V.Exa. aquilo que está acontecendo: são prisões arbitrárias, desaparecimentos de pessoas e também julgamentos que, de fato, não se baseiam na verdade e na justiça". Quando eu disse isso, ele se enfureceu tanto que agitou a mesa; agitou a mesa, assim. Eu, graças a Deus, naquele momento, fiquei extremamente calmo e disse a ele: "Sr. Presidente, eu estou aqui, em nome dos bispos, numa viagem de paz, de amizade e de entendimento mútuo". Ele disse: "O seu lugar é na sacristia, e não se meta em política, porque há gente que ameaça até os nossos Ministros para sequestrá-los, e vocês estão atrás de tudo isso". "Veja, Presidente Médici, é um grande equívoco. Nós todos somos a favor da paz e queremos que todo o mundo se entenda, e se entenda logo; e colabore com o senhor e com as autoridades constituídas". Ele disse: "Isso nós sabemos fazer. Isso não é da conta do senhor. Muito obrigado por sua presença, mas eu estou informado de tudo o que preciso ser informado. Eu não preciso do seu conselho. Volte para a sua cidade. O seu antecessor era muito mais amigo meu do que o senhor". Eu disse: "O meu antecessor era o Cardeal Rossi. Ele lutava também pela fidelidade e pela paz e solidariedade humana. Muito obrigado, até logo".
Ele levantou-se e me deu a mão, eu dei a mão a ele e saí de lá. Não contei nada para os jornais, não contei nada para os jornalistas, que sabiam que eu estava por lá, e alguns deles sempre faziam passar alguma notícia assim, curiosa como essa. Só que eu tive que fazer uma conferência, à noite, num centro ecumênico, e ali eu disse: "Eu acho que todos nós temos que trabalhar para que o Brasil encontre o caminho da paz, da justiça, mas também da solidariedade, o que não vejo, neste momento, na Presidência da República, da qual estou voltando nesta hora". Foi só. Isso terminou aí, eu nunca me queixei do assunto, nunca reclamei. Quando ele morreu, eu não publiquei. Só publiquei agora. Quando as jornalistas descobriram o caso e puseram no livro delas, então, eu também tive que colocar no meu.
Jesus não foi indiferente nem estranho ao problema da dignidade e dos direitos da pessoa humana, nem às necessidades dos mais fracos, dos mais necessitados e das vítimas da injustiça. Em todos os momentos Ele revelou uma solidariedade real com os mais pobres e miseráveis (Mt 11, 28-30[4]); lutou contra a injustiça, a hipocrisia, os abusos do poder, a avidez de ganho dos ricos, indiferentes aos sofrimentos dos pobres, apelando fortemente para a prestação de contas final, quando voltará na glória para julgar os vivos e os mortos.
Depoimento na íntegra disponível em:



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