TEMPO DE COMPLACÊNCIA E DE ACOMODAÇÃO
Por DARCY RIBEIRO (Montes Claros-MG, 1922 – Brasília-DF, 1997. Antropólogo, historiador, sociólogo escritor e político, conhecido por seu foco em relação aos indígenas e à educação no país).
Vivemos um tempo de complacência e de acomodação. Mesmo os princípios democráticos mais elementares em que se assenta o regime republicano são esquecidos e negados exatamente por aqueles que mais deviam cuidar de sua inteireza. Difundiu-se em todas as esferas influentes do país, aquelas que mais pesam na tomada de decisões administrativas, legislativas e mesmo judiciárias, uma verdadeira ojeriza às questões de princípio.
Assim, quem quer que se disponha a exigir coerência doutrinária nos atos públicos ou o exame das questões públicas à luz de princípios meridianamente expressos na Constituição, depara com um círculo fechado de estranheza e até de perplexidade. É como se tudo devesse ser decidido, por uma questão de bom gosto e de bom tom, nos termos aparentemente mais ingênuos, só atentos às exigências formais de procedimento. Neste ambiente amaciado, medram vigorosamente a inépcia, a incúria, o favoritismo e a corrupção, alimentados por decisões diariamente tomadas, com a maior desenvoltura, em todas as esferas do poder público.
Como a ninguém cabe a defesa do que é de todos, os interesses de grupos defendidos por vozes eloquentes junto ao pequeno burocrata que informa processos ou junto ao alto funcionário que gere uma província administrativa, levam sempre a fatia maior do bolo público, repartido e doado em comandita. Não se exige de ninguém critérios explícitos de atuação ou obediência a princípios, exacerbando-se cada dia mais a afoiteza com que os setores privados espoliam o que é público.
A miserabilidade das nossas escolas, a falta de assistência social, a carência dos serviços de saúde destinados a todos, são pacificamente pela pobreza nacional, pelo vulto das despesas militares, pela sonegação. Vultosíssimos recursos dos serviços de previdência, pertencentes, de direito, aos trabalhadores brasileiros, são aplicados sem escândalo na especulação imobiliária e para construir apartamentos destinados às classes mais abonadas. Os serviços de saúde constroem hospitais suntuosos que a medicina nativa compara, orgulhosa, com o "precaríssimo" sistema hospitalar de países adiantados, esquecida de que é com o dinheiro de todos que cuida tão miraculosamente da saúde de pouquíssimos, abandonando os mais aos curandeiros.
Os próprios intelectuais afinam frequentemente a sua voz pelo diapasão da tibieza e muitos deles caiem na fatuidade da crônica social, ainda quando pretendem escrever obra séria. A juventude, principalmente estudantil, uma vez diplomada, quase toda cai no bom-tom, incorporam-se à clientela e passam a comportar-se conforme a expectativa da gente de siso.
De onde vem tamanha pusilanimidade e tamanho conformismo? Que forças minam a fé no futuro, logo esmaecida? Acaso estamos tão seguros dos nossos caminhos, tão certos de que liquidaremos em tempo breve e previsível a ignorância e a miséria em que vive a imensa maioria dos brasileiros, para tão cedo e tão completamente se acomodarem tantos?
As tentativas raivosas de calar aqueles que lutam pela democratização de nossa sociedade, periodicamente renovadas, apenas demonstram o quanto pesam no Brasil as forças retrógradas, quantos aliados poderosos têm o atraso e a miséria e como são ainda revolucionários para nós, os ideais que serviram de base à edificação da democracia na história. Os setores mais retrógrados se aliam e procuram perpetuar a nossa estrutura social arcaica que tem por base uma massa miserável e ignorante de milhões de deserdados e, por cúpula, uma camada de dissipadores como só o são, no mundo moderno, os ricos dos países mais pobres. Tais setores atuam, sim, através da influência palaciana, da exploração do eleitoralismo parlamentar, da pressão sobre os agentes executivos e ocasionalmente, através de pregações e pronunciamentos cujo prestígio decorre da posição hierárquica daqueles de que emanam. Quem compõe os setores retrógrados?
O saudosista aristocrático, orgulhoso de si, do número de gerações em que seus antepassados só se ocuparam em mandar, que não se consola com a luta pelo bem-estar de todos os brasileiros e não apenas de uma elite destinada a governar uma massa de ignorantes. O oportunista, pronto a defender qualquer ideia e, logo, a dela transigir porque só está interessado no que ganhará com a posição assumida, que se ofende com a correção de atitudes daqueles cidadãos que, por contraste, o deixam irremediavelmente desmascarado. O corrupto que, montado em cargos públicos, rouba e explora o país, tem por inimigo natural o servidor que se opõe a qualquer forma de iniquidade e cobra mesmo dos que têm privilégios uma dívida para com o bem-estar de todos os brasileiros. Os setores retrógrados procuram, por qualquer meio escuro e insidioso que os resguarde da responsabilidade das investidas de oposição, influir na opinião dos mais ignorantes ou mais crédulos e pressionar os governantes que julguem capazes de calar as vozes insistentes e incômodas que lutam por uma sociedade mais democrática e justa.