A REPÚBLICA MULHER: A IMAGEM DA MULHER COMO SÍMBOLO REPUBLICANO NO BRASIL
(Para uma reflexão histórica sobre a relação entre mulher, sociedade e política no Brasil)
A República no Brasil foi proclamada no Brasil em 15 de novembro de 1889. Mas não bastavam os aparelhos e instrumentos legais e repressores do Estado para sustentar o novo regime. Era preciso construir uma cultura política republicana para a persuasão da sociedade nacional. Para isso, os republicanos tiveram que pensar em símbolos, imagens e rituais que despertassem na população a crença na legitimidade do novo regime político. Tais símbolos deveriam marcar também as diferenças entre a República e a Monarquia, demonstrando as vantagens daquela sobre esta.
Para José Murilo de Carvalho, alguns símbolos republicanos eram novidades. Outros nem tanto. Muitos não foram aceitos pela sociedade brasileira. Um exemplo de símbolo bem-sucedido a distinguir completamente a República da Monarquia foi Tiradentes, eleito como herói cívico a ser cultuado pelos republicanos. Desse modo, o dia 21 de abril, data de seu falecimento, foi considerado feriado nacional, juntamente com o 15 de novembro, dia da proclamação da República. Outra tentativa de criar um símbolo republicano foi a utilização da imagem da mulher como símbolo republicano. Mas como surgiu a ideia de usar a mulher como símbolo do novo regime político pelos republicanos? Segundo José Murilo de Carvalho, "um dos elementos marcantes do imaginário republicano francês foi o uso da alegoria feminina para representar a República. A Monarquia representava-se naturalmente pela figura do rei, que, eventualmente, simbolizava a própria nação. Derrubada a Monarquia, decapitado o rei, novos símbolos faziam-se necessários para preencher o vazio, para representar as novas ideias e ideais, como a revolução, a liberdade, a república, a própria pátria. Entre os muitos símbolos e alegorias utilizados, em geral inspirados na tradição clássica, salienta-se o da figura feminina".
"A figura feminina passou a ser utilizada assim que foi proclamada a República, em 1792. A inspiração veio de Roma, onde a figura feminina já era um símbolo de liberdade". Com o avanço da Revolução Francesa, os franceses começaram a utilizar essa imagem, mas com algumas mudanças como o barrete frígio, usados pelos libertos romanos, o feixe de armas, representando a unidade, o leme e os seios desnudos. Um exemplo do uso dessa alegoria aparece no quadro de Eugène Delacroix intitulado "A Liberdade Guiando o Povo" (1830). No quadro se vê a liberdade ser representada por uma figura feminina. O barrete frígio cobre sua cabeça. Na mão esquerda carrega um fuzil com baioneta calada, já na mão direita leva a bandeira tricolor. Outros elementos destacados são os seios desnudos e o gesto de comando entre os mortos e feridos.
A partir da II República na França (1848-1852), a figura feminina enquanto símbolo republicano popularizou-se. Apareceu Marianne, nome popular na França, que se tornou a personificação da República. Como reação, o governo incentivou o culto à Virgem Maria. Essa atitude fez com que se desencadeasse uma batalha de cultos que ficou conhecida como Mariolatria X Marianolatria.
Os republicanos brasileiros de ideais franceses, inclusive os positivistas, tinham uma grande riqueza de imagens e símbolos para se inspirarem. De acordo com Augusto Comte, criador do positivismo, o símbolo perfeito para a humanidade seria a virgem-mãe. Suas especificações eram uma mulher de trinta anos, sustentando um filho nos braços. O rosto era de sua amada Clotilde de Vaux. Todavia, no caso do Brasil, os republicanos não obtiveram êxito em relacionar a figura feminina com regime político instaurado em 1889. Quais seriam os possíveis motivos para este fato? Em primeiro lugar, na França, a Monarquia era representada pela figura masculina do rei, enquanto que, no Brasil, o trono tinha como herdeira uma mulher. Os próprios atores políticos responsáveis pelo desfecho do 15 de novembro contribuíram para a imagem negativa sobre a mulher, mais especificamente, buscando denegrir o Império e a sua herdeira, difundindo na sociedade uma representação de Isabel enquanto um objeto nas mãos do marido, o Conde D'eu, que, por ser francês, teve sua imagem vinculada à monarquia. Em segundo lugar, a sociedade nacional era marcadamente patriarcal e machista, inclusive não havendo no país até aquele momento uma participação feminina nos fatos políticos e, portanto, sua imagem cívica não tinha nenhum sentido entre a população. Pelo contrário, o comportamento machista vigente na sociedade fazia com que se difundissem caricaturas em jornais sobre as representações femininas feitas pelos republicanos. Algumas caricaturas chegavam a um nível tão elevado de escárnio e ironia que terminaram por vincular a figura republicana da mulher com uma prostituta. Em terceiro lugar, constituindo-se em um símbolo importado, isto é, sem referências históricas, a figura da mulher-república não foi reconhecida pela população nacional. Finalmente, a figura da mulher também foi utilizada como um elemento antirrepublicano. Os bispos incentivaram o culto à figura de Maria. Em 1904, Nossa Senhora Aparecida foi declarada padroeira do Brasil.
A derrota republicana na batalha da alegoria feminina deveu-se, conforme José Murilo de Carvalho, ao fato de que "símbolos, alegorias, mitos só criam raízes quando há terreno social e cultural no qual se alimentarem. Na ausência de tal base, a tentativa de criá-los, de manipulá-los, de utilizá-los como elementos de legitimação, cai no vazio, quando não no ridículo. Parece-me que na França havia tal comunidade de imaginação. No Brasil, não havia".
Referência:
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.