A LUTA CONTRA A RAZÃO E O RACIONAL É ALGO TÍPICO DE PERÍODOS DE AUSÊNCIA DE LIBERDADE: DISCURSO A FAVOR DE UMA TRADIÇÃO DE REBELDIA E INCONFORMIDADE NAS ARTES DE PENSAR, SABER E EDUCAR

Por ANÍSIO SPÍNOLA TEIXEIRA (Caetité-Bahia, 12 de julho de 1900 - Rio de Janeiro, 11 de março de 1971. Jurista, intelectual, educador e escritor brasileiro)

Até hoje o ato de pensar - matriz, sem dúvida, de todas as invenções – foi, entre os homens, o mais vigiado de todos os atos. Os grandes violadores do pensamento convencional, todos os grandes inovadores foram sacrificados pelos "guardiães" do rebanho. E, sobretudo, eram mortos os que julgassem possível um novo pensamento religioso, moral ou político. Sócrates morreu porque julgou possível a dúvida, o problema, a questão, a pergunta. Jesus morre porque deseja substituir a "resposta" convencional por outra mais generosa. No sentido religioso e político até hoje não se escreveram documentos mais revolucionários do que os evangelhos, que nos dão conta de sua vida, sua mensagem, sua morte. A própria Igreja, fundada, é verdade, mais na morte de Jesus do que em sua vida e mensagem, vê-se abalada nos seus alicerces quando um dos seus fiéis resolve iniciar um movimento pela leitura e interpretação independente dos evangelhos. Desencadeia o fato longo período de guerra civil na cristandade. Mas, afinal, as facções se recuperam e, de um lado e de outro, protestantes e católicos restabelecem a tradição e passam a guardá-la com o mesmo zelo antigo, protegidos pelo "braço secular" agora mais do Estado, ou seja do Império, do que da própria Igreja.
Não me irei estender aqui na história antiga, mas sempre comovente da repressão do impulso humano de rebeldia. Realmente é extraordinário que não tenha ainda morrido tal espírito. Costuma certa malícia muito velha da história, respondendo a sugestão de governo de Platão, indagar: "Qui custodiet custodes?" para significar que jamais poderá a humanidade confiar nos seus guardiães, ainda que filósofos, conforme a lembrança platônica, pois, quem os haveria de guardar? Bem sei que os guardiães podem corromper-se e tirar proveito de sua posição. Mas se interpretarmos a frase como dúvida sobre a fidelidade de princípio dos guardiães, toda a história humana negaria, pois, nunca partiu deles a fagulha revolucionária e quando algum, dentre eles, a quis lançar foi prontamente destruído. Quem guardaria os guardiães? Eles próprios e seus interesses na conservação status quo. De modo que a pergunta certa seria não quem guardaria os guardiães, mas quem os despertaria, quem os impediria de guardar demais o que lhes tivesse sido confiado. Seja o sacerdote, seja o erudito, para indicar os dois mais significativos ‘guardiães’ da história, nenhum dos dois precisa de ser guardado, pois guardarem-se guardam-se eles e com tal empenho e tamanho zelo, que o difícil será arrancá-los de sua apaixonada complacência pelo que existir.
Ao apontar assim o gosto do homem pela conservação do seu pensamento e o receio de sua modificação, poderá parecer esquecimento não indicar a exceção, um como intermezzo de liberdade, que marcou o período entre o século XVIII e o século XIX, mas, sobretudo o da segunda metade deste último.
Nesse período, viveu, com efeito, a humanidade uma extraordinária experiência de liberdade de pensamento, talvez a maior da História. Quase se admitira a possibilidade de a liberdade vir ser definitivamente institucionalizada. Grande número de constituições inscreveu o princípio em seus textos. Separaram-se as Igrejas dos Estados, proclamando-se que as crenças religiosas eram assuntos privados, em relação às quais o Estado apenas influiria no sentido de mantê-las livres.
Os que ainda leem a literatura desse período, e falo assim porque parece que muitos jovens de hoje já não a leem, ficam maravilhados com a liberdade de espírito dos escritores dessa época. Aqui e ali, havia intolerância, mas o mundo considerado civilizado ria-se dessas estreitezas e os escritores e pensadores no campo da religião, da ciência, da estética, da política e da moral – sentiam-se livres para acompanhar as ideias até o fim, segundo o conselho de Platão, ou até onde o pensamento humano pudesse atingir, como repetia G. B. Shaw.
As intolerâncias somente vieram a ressurgir já no século XX, depois da Primeira Guerra Mundial, anunciadas pelos profetas que, tão significativamente, passaram a chamar de estúpido o século XIX. Até hoje persistem elas, agora dramatizadas nesse conflito entre duas teorias econômicas ou talvez apenas entre duas políticas hegemônicas (capitalismo e comunismo), conflito a que se quer dar caráter religioso, senão teológico, como que para melhor lembrar o conflito que dividiu protestantes e católicos, nos primeiros séculos de nossa era. De qualquer modo, vem este conflito suprimindo o espírito de liberdade, que a humanidade prelibou no interlúdio do século XIX. Todos vós já nascestes e fostes criados numa atmosfera de dogma, de rudes certezas, de crenças apaixonadas e de desprezo pelo espírito de dúvida, de ceticismo científico, de verdade hipotética e provisória, de revisão, de razão, enfim, porque o característico dos períodos sem liberdade é a luta contra a razão e o racional.
Será que estamos próximos a encerrar esse ciclo de paixão e estreiteza? Há indícios que sim. Talvez possamos esperar que a guerra civil, em que se acha mergulhada a espécie, venha, pelo menos, a perder a intensidade. Assim que tal se der, o espírito de liberdade voltará a florescer entre os homens. E a nossa tarefa, de mestres e professores, poderá vir a ser a nova tarefa de transmitir não a tradição, mas a revisão da tradição. Com os progressos efetivados, malgrado tudo, na arte de pensar – é certo que muito mais no chamado "mundo da natureza" do que no chamado "mundo do homem" – temos motivo de afirmar que nenhum de nós estará em condições de prever até onde poderá ir o pensamento humano.
Não será que estamos, no fim do século XX, como outrora no século dezesseis, divididos entre conquistas incomensuráveis no campo do universo físico e uma melancólica luta político-religiosa? No século XVI, a contradição era entre as descobertas dos novos continentes, pelas quais ingressamos nós na História, e as guerras de religião; hoje seria entre as descobertas científicas, que definitivamente inauguram o processo pelo qual a miséria e a pobreza se tornarão tão obsoletas como os sacrifícios humanos do início da era neolítica e, do outro lado, a querela político-econômica entre os processos de desenvolvimento social, que se desejam erguer ao nível de duas religiões: capitalista e comunista.
Total liberdade de pensamento jamais houve na História. A liberdade que se registrou foi no pensamento escrito, e publicado em livros, pela simples razão, que os "guardiães" acabaram por aprender, de que os livros eram lidos por muito poucos, não constituindo assim perigo maior. Até hoje, no Brasil, por exemplo, goza-se de muito mais liberdade intelectual no livro do que na imprensa, no discurso ou na aula.
Ora, se tais condições se modificarem e algo de parecido com o clima do século XIX – um clima de paz intelectual – se restabelecer na Terra, e a isso juntarmos os progressos realizados no campo da grande arte humana, que é a arte de pensar e de saber, que horizontes não se poderia abrir ao espírito humano? Somos os guardiães e transmissores da cultura. Temos uma grande tradição de medo e de conformidade e uma pequena e sempre viva tradição de rebeldia e de inconformidade.
Se a paz intelectual se restabelecer, a segunda tradição ganhará ascendência e, com os novos métodos, a nova disciplina e a nova segurança da arte de pensar, poderemos marchar com ousadia e coragem, sem nos assustarmos nem assustar os demais. A velha timidez e os velhos receios já não terão razão de ser. Conheceremos melhor a arte, poderemos exercê-la com mais equilíbrio e os nossos semelhantes continuarão a vigiar-nos, não para nos punir, mas para nos estimular. São eles que nos perguntarão pelas nossas descobertas. Serviremos à sociedade na medida em que colaborarmos na marcha do pensamento humano, força que afinal estamos aprendendo a usar e que, por isto mesmo, haveremos de conquistar a liberdade de usar. Seremos, então, não apenas os guardiães do passado, mas os profetas, os videntes, os antecipadores do futuro e, no final das contas, os seus promotores.
Referência:
TEIXEIRA, Anísio Spínola. Educação e o mundo moderno. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.



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