NUNCA SER UM POLITICAMENTE INDIFERENTE

(Inspirado no texto "Odeio os indiferentes" de ANTONIO GRAMSCI)

Por JORGE ESCHRIQUI
Fiz completamente os antigos 1.º e 2.º graus em uma escola particular confessional católica (da 1.ª série do 1.º grau até o 3.º ano do 2.º grau). Era escola bastante conservadora que seguia basicamente o modelo de ensino tradicional do regime militar, embora os gestores tentassem esconder às vezes tal fato. Durante os onze anos em que lá estudei, tinha que seguir regras bem rígidas, como por exemplo, horários para entrada e saída sem concessões, fila para a entrada e o intervalo (recreio) estando dispostos de um lado só meninos e outro só meninas, orações em todas as entradas diariamente, hora cívica todas as sextas-feiras cantando todos os hinos possíveis (do Distrito Federal, Nacional, da Independência e da Bandeira), advertências e suspensões em caso de indisciplina em sala de aula (quantas vezes levei umas boas palmadas entre os meus 7 e 12 anos por causa de algumas bagunças que aprontava na escola), proibição de namoros no espaço físico escolar, etc.
O nosso uniforme na época do 1.º grau era no mínimo uma tentativa de réplica daqueles usados em escolas militares (sapato sempre preto, calça azul com duas listras amarelas nas laterais e camisa amarela com gola azul - só faltava o quepe e os cabelos com tarrafas para as meninas). As saias eram perdidas nas épocas de temperaturas altas e baixa umidade em Brasília, mas sempre eram inspecionadas na entrada da escola por inspetoras e coordenadoras de ensino, pois caso estivessem minimamente acima dos joelhos, a aluna deveria voltar para casa com um recado na agenda para os pais. A roupa para os estudantes do 2.º grau flexibilizou um pouco em 1993, quando eu ainda fazia o 1.º grau, e não foi por livre iniciativa dos gestores escolares. Eu fazia a 8.ª série, era um dos melhores alunos em desempenho da sala, mas bati pé sobre aquele uniforme que me soava um resquício da ditadura após assistir em 1992 a minissérie "Anos Rebeldes" na TV Globo. Conseguimos com outros colegas melhorar um pouco o uniforme. Entrou uma camisa branca mais discreta com o nome da escola na vertical e por extenso, liberou-se tênis e sapatos de qualquer cor e a calça passou a ser jeans. E nas aulas de educação física, no contraturno escolar (estudávamos as demais disciplinas pela manhã), as meninas puderam usar bermudas azuis com listras amarelas (confesso que algumas das moças exageravam um pouco no tamanho das bermudas para destacarem as suas formas físicas). Foi uma grande conquista para mim e outros companheiros / colegas que lutaram pela mudança dos uniformes. Todavia, aquilo que custou um reconhecimento no dia da formatura de conclusão do 1.º grau na paróquia vinculada à igreja. Dois alunos deveriam ganhar um prêmio como melhores alunos de cada 8.ª série. Eu estudava na 8.ª série A. O que aconteceu sob o protesto de alguns colegas de sala no dia? A escola simplesmente concedeu a uma menina o prêmio. Somente à ela. E eu fiquei a ver navios. Afinal, eu era o "agitador" dos outros alunos!
Desde os meus 5 anos de idade eu viajava para o Ceará a fim de passar férias de final de ano com a família materna. Eu não me restringia apenas aos familiares em Fortaleza com as suas belas praias. Eu ia para o sertão visitar os avós maternos pelos quais tenho até hoje um amor interminável. Eles moravam em uma fazenda no município de Itapipoca e criavam galinhas e gado. Graças a Deus nunca faltava nada lá devido ao trabalho árduo, à aposentadoria de professora primária da minha avó e de trabalhador rural do meu avô e ao aporte financeiro mensal do meu tio padrinho e da minha mãe. Todavia, carrego comigo até os dias atuais cenas que me marcaram bastante. A zona rural de Itapipoca naquela época não tinha telefone por perto, água encanada, luz elétrica e saneamento. Nunca me esqueci do sacrifício dos meus avós e do meu tio Raimundo (uma espécie de vaqueiro da fazenda) na busca por água para beber, lavar louças e roupas, regar os canteiros e hidratar os animais. Todos os dias, entre 4 e 8 da manhã, era aquela luta com o pobre do jumentinho com uma cangalha e dois cambitos e do burrinho na carroça com um tambor d´água. E olha que ainda estava bom lá em casa. Vi seca devastando plantações, árvores secas, cabeças de animais mortos pela fome, sol escaldante que criava miragens de poços d´água onde só havia areia e pedra, camponeses em busca de algum trabalhinho por empreita ou diária para alimentar pelo menos com feijão e farinha (o pirão de feijão) a suas famílias, pessoas morrendo de doenças comuns por falta de assistência médica adequada, saneamento e ou alimentação adequada, jovens sem perspectiva de ascensão social pela ausência de institutos técnicos ou universidades por perto, etc.
É muito fácil um indivíduo alienado da região Centro Sul do Brasil que nunca teve tal experiência ao vivo dizer que o nordestino é "burro" porque só vota no Lula (como se o Bolsonaro fosse algum grande líder político por acaso), preguiçoso porque vive só de bolsa família, sai da sua terra natal porque quer e outros despautérios. Apenas quem viu e sentiu de perto o que foi a caatinga e a luta do povo nordestino pela sobrevivência pode ter a devida consciência social, política e econômica do Nordeste. As minhas viagens de férias na infância e adolescência foram verdadeiras aulas prática sobre injustiças e desigualdades sociais. Gostando ou não os adversários políticos do Lula, foram os governos do Partido dos Trabalhadores que levaram água para quem tinha sede, luz para quem vivia nas trevas, renda para quem mendigava trabalho e não tinha um tostão às vezes para alimentar a sua família e institutos e campus de universidades até famílias que jamais tiveram um portador de diploma superior entre os seus membros. Não é porque eu estudei a vida toda em escola particular, filho de classe média composta por uma família de servidores públicos com bons vencimentos, ingressante em universidade federal no primeiro vestibular com 17 anos, proprietário de carro 0km para ir para o curso superior, entre outras regalias, que não enxergaria os benefícios que o povo nordestino teve e a possibilidade de melhoria de vida levada pelos governos federais de esquerda.
Foi a realidade nordestina que forjou de alguma forma o estudante com consciência política já aos 13, 14, 15, 16 e 17 anos de idade. Percebi que não poderia ser um sujeito passivo. Era preciso mudar muita coisa no país, começando pelo próprio ambiente escolar. Escrevia textos para as professoras de Geografia e Redação e manifestos que pregava no mural do fundo da sala de aula quase todos os dias sobre a necessidade de maior democratização do ambiente escolar e a solução dos diversos problemas do país. Eram análises, críticas e soluções simplórias, mas compatíveis intelectualmente com a minha faixa etária na época. Beirava até a extrema inocência, pois eu sonhava às vezes em ser presidente do Brasil achando que era só chegar ao poder e transformar o país de uma hora para outra com uma canetada ou vara de condão como em um conto de fadas. Mas pelo menos nunca fui acomodado, conformado e alienado diante da realidade que me cercava.
Tal posicionamento me custou a antipatia de alguns colegas, professores e gestores da escola. Por que este menino não pensa apenas em festinhas na casa dos colegas e amigos, vídeo game da "Nintendo", roupinha da moda como "Company", "Pakalolo" ou "Redley" e estudar para tirar boas notas como os demais ao invés de ser um "agitador", "subversivo" ou "rebelde" ao querer transformar a própria escola e debater política que é coisa de adultos? Se eu guardo mágoas? Zero. Primeiramente porque a mágoa é veneno para o corpo e o espírito e, em segundo lugar, sou grato pela contribuição da escola que frequentei pela formação ética e moral que tive a ponto de ter uma "cabeça tão dura" que jamais ninguém pelo convenceu pelo mundo afora a beber, usar drogas ilícitas, fumar e outras coisas. E olha que não faltou quem atentasse em diversos momentos, principalmente alguns falsos "colegas" das universidades que frequentei.
Entretanto, os meus posicionamentos políticos desde jovenzinho me custaram críticas e injustiças na escola. Quantas vezes eu tirava excelentes notas e não fui reconhecido? Pelo menos duas. Quando não fui reconhecido entre os melhores alunos da 8.ª série e do 3.º ano durante as formaturas de conclusão de curso. O máximo que recebi foi uma carta de despedida em dezembro de 1996 do então diretor geral da escola. Aliás, carta dirigida exclusivamente a mim e não a outros alunos exatamente por causa das minhas ideias políticas e posicionamentos enquanto estudante. Fiquei chateado pela nova "injustiça" na formatura do ensino médio. Todavia, depois deixar para lá. Vi que tudo valeu a pena. Sabe por quê?
Porque nunca fui um covarde. Pelo contrário, fui um adolescente consciente politicamente que sabia o meu valor e papel na transformação naquela época da minha escola e atualmente do meu país. Sei que sou apenas um pequenino tijolinho e às vezes um intelectual com pouca repercussão no meio acadêmico. Todavia, quando se faz uma grande obra, (que é exatamente a construção de uma grande nação mais justa), precisa-se de centenas e milhares de tijolinhos para erguê-la. Eu me orgulho de que sempre fui um tijolinho, embora muitas vezes refutado ou esquecido ao longo da minha formação. Atualmente descobri que escolher um lado na história implica em arcar com as consequências positivas e negativas. Infelizmente ser de esquerda no Brasil traz mais ônus do que bônus. Mas e daí? Seria um frustrado se tivesse escolhido um posicionamento político que contrariasse as cenas que presenciei e presencio no Brasil. Seria um covarde se não tivesse feito o meu papel para tentar melhorar na época o meu ambiente escolar. Seria um desprezível perante a minha consciência se eu tivesse escolhido o caminho da indiferença política diante dos autoritarismos, do retrocesso e das injustiças que observei na minha adolescência simplesmente em troco de um reconhecimento desta ou daquela pessoa. Aliás, o não reconhecimento não me impediu de entrar para a universidade pública com apenas 17 anos e construir aos poucos a minha carreira acadêmica: mestrado com 21 anos, doutorado com 24 anos e pós-doutorado com 40 anos. Sinto-me realizado e feliz por ter sido e continuar sendo não um indiferente diante da dor dos meus semelhantes, mas por participar na vanguarda da luta social desde os tempos de escola como um cidadão consciente que devo obrigatoriamente ser sempre!



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