DEMOCRACIA, LIBERDADE DE PENSAMENTO E A IMPORTÂNCIA DA UNIVERSIDADE PÚBLICA PARA A SOCIEDADE BRASILEIRA
(Para uma reflexão crítica sobre os ataques ideológicos da extrema direita às universidades públicas)
Por ANÍSIO SPÍNOLA TEIXEIRA (Caetité-Bahia, 12 de julho de 1900 - Rio de Janeiro, 11 de março de 1971. Jurista, intelectual, educador e escritor brasileiro).
A cultura brasileira se ressente da falta de quadros regulares para a sua formação. Em países de tradição universitária, a cultura une, solidariza e coordena o pensamento e a ação. No Brasil, a cultura isola, diferencia, separa. E isso, por quê? Porque os processos para adquiri-la são tão pessoais e tão diversos, e os esforços para desenvolvê-la tão hostilizados e tão difíceis, que o homem culto, à medida que se cultiva, mais se desenraiza, mais se afasta do meio comum, e mais se afirma nos exclusivismos e particularismos da sua luta pessoal pelo saber.
Não há uma comunhão dos cultos. Repelido, muitas vezes, pelo meio, sobre o qual se eleva pelos conhecimentos superiores ou especializados que adquiriu à própria custa, o homem culto é, ainda, no Brasil, hostilizado pelos outros homens cultos. A heterogeneidade e deficiência dessas diferentes culturas individuais e individualistas fazem com que o campo de lutas mesquinhas e pessoais, em que se entredevoram, sem brilho e sem glória, os parcos homens de inteligência e de imaginação que ainda possuímos.
A singular agrestia do meio intelectual e público do Brasil, em que os julgamentos são armas de combate, a análise, forma insidiosa de oposição, e o desejo de destruir e diminuir a obra alheia, o próprio modo de ser da inteligência, não será essa nova famigerada antropofagia política e mental a consequência mais grave do nosso nomadismo intelectual, do nosso isolamento espiritual e dos nossos processos indígenas de estudo e de formação mental?
Estou convencido de que esse é o mais grave aspecto do aparentemente inocente autodidatismo nacional. Somos isolados e hostis porque é isolada e hostil a forma de nos prepararmos intelectualmente para as lutas da vida e do espírito.
Não cooperamos, não colaboramos, não nos solidarizamos com os companheiros, nem em ação, nem em pensamento, porque cada um de nós é o centro do universo, e só desse centro partirá a verdadeira ação e o verdadeiro pensamento. É esse isolamento que a Universidade virá destruir. A Universidade socializa a cultura, socializando os meios para adquiri-la. A identidade de processos, a identidade de vida e a própria unidade local farão com que nos cultivemos, em sociedade. Que ganhemos em comum a cultura. Que nos sintamos solidários e unidos pela identidade de objetivos, de preocupações, de interesses e de ideais. E daí, que nos sintamos uma comunidade, governada por um espírito comum e comuns ideais.
O isolamento e o autodidatismo nacionais nos fazem incoerentes, paradoxais, irritadiços e extravagantes. A opinião intelectual de um país é o reflexo dos seus meios e processos de cultura. A Universidade nos vem dar disciplina, ordem, sentido comum e capacidade de esforço em comum. Nenhum ideal menor pode bastar às universidades para que possam realizar a sua grande aventura intelectual de difundir e alargar o saber humano.
Muito ciosa das conquistas feitas de liberdade de pensamento e de crítica, a Universidade não as dispensa para viver. Não terá ela nenhuma "verdade" a dar, a não ser a única verdade possível, que é a de buscá-la eternamente. Fiel, assim, à grande tradição universitária da humanidade, havia de por certo desgostar aos que querem diminuir o Brasil até ajustá-lo aos limites de suas ideologias pessoais e de suas pessoais inquietações.
Muito sonhavam, é certo, iniciar entre nós a tradição universitária recusando essa liberdade de cátedra, que foi conquistada pela inteligência humana nas primeiras refregas intelectuais de nossa época.
Muitos julgavam que a Universidade poderia existir, no Brasil, não para libertar, mas para escravizar; não para fazer marchar, mas para deter a vida... Conhecemos, todos, a linguagem desse reacionarismo. Ela é matusalêmica.
"A profunda crise moderna é sobretudo uma crise moral". "Ausência de disciplina". "De estabilidade". "Marchamos para o chão". "Para a revolução". "É o comunismo, que vem aí". Falam assim, hoje. Falavam assim, no passado.
É que a liberdade é uma conquista que está sempre por fazer. Desejamo-la para nós, mas nem sempre a queremos para os outros. Há na liberdade qualquer coisa de indeterminado e imprevisível. Ser livre importa em aceitar as consequências, sejam quais forem. Ser livre importa em "seguir a ideia até onde ela nos levar..." Por isso, só podem amar a liberdade os que realmente tiverem provado, até o fundo, a insignificância da vida humana, sem o acre sabor desse perigo.
Por isso é que a Universidade é, e deve ser, a mansão da liberdade. Os homens que a servem e os que, aprendendo, se candidatam a servi-la, devem constituir esse fino escol da espécie para quem a vida só vale pelos ideais que a alimentam. Essa bravura é que os torna invencíveis. Não morreram em vão os que morreram por esse ideal de um "pensamento livre como o ar"...
Todos os que desapareceram nessa luta, como todos os que hoje nela se batem, constituem a grande comunhão universitária. Dedicadas à cultura e à liberdade, as universidade estão sob um signo sagrado, que as faz trabalhar e lutar por um mundo de amanhã, fiel às grandes tradições liberais da humanidade.
Referência:
TEIXEIRA, Anísio Spínola. Educação para a democracia: introdução à administração educacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.