O BEM OU A FELICIDADE ESTÁ NA ATIVIDADE HUMANA PRESENTE DIRIGIDA INTELIGENTEMENTE
Por ANÍSIO Spínola TEIXEIRA (Caetité-Bahia, 12 de julho de 1900 - Rio de Janeiro, 11 de março de 1971. Jurista, intelectual, educador e escritor brasileiro).
Os moralistas - ao traçarem a ciência do 'Bem' - têm partido do pressuposto de que a natureza humana é essencialmente má e que o ideal seria se a pudéssemos substituir por qualquer outra coisa.
Daí decorre que o reinado da moral ou do "bem", como os moralistas o concebem, é estranho à natureza humana. Qualquer coisa acima ou fora dela, a que temos de conformá-la ou que temos que conquistar com o sacrifício dessa pobre natureza. E como uma e outra coisa são mais ou menos impossíveis, estamos como estávamos em relação à ciência, no tempo da magia - absolutamente incapazes de progresso. Hoje, como ontem, como há vinte e há trinta séculos, nós continuamos a pregar, em moral, uma coisa e a fazer outra. E a moral que nos devia fazer felizes, apenas nos faz mais infelizes.
Imaginemos a medicina governada pelos princípios morais tradicionais ou do próprio Joseph de Maistre que também considera a doença um castigo sobrenatural ao pecado original! Onde estaria a medicina, ainda nos dias de hoje, se tivesse de obedecer a esses princípios?
Estaria onde está ainda, para a grande maioria, a Moral.
A separação da Moral das atualidades presentes da vida e da natureza humana, termina por codificá-la em uma série de prescrições proibitivas. Não fazer, torna-se a essência da moralidade.
Na prática, vem, entretanto, a resumir-se em um conjunto de costumes e praxes mais ou menos puros e mais ou menos cômodos, a que se dá o nome respeitável de moralidade convencional. Está aí o panorama moral do mundo. O grande rebanho humano servido por uma moral convencional que se resume em aparências e em preconceitos. O grupo dos homens de ação que se utiliza de tudo isso para a realização dos seus propósitos e que defende, por essa causa, a moral cômoda que lhes permite os triunfos. Os "rebeldes" que buscam numa forma inferior de libertação a revelação de suas "individualidades". E, por último, os idealistas inumanos, que desprezam a "natureza", desprezam a "ação" e se fecham em um egoísmo espiritual, fanático e ardente.
Todos sofrem do mesmo erro de considerar a moral como um domínio estranho à natureza, e governado por princípios, em essência, inadaptáveis às nossas condições de vida.
Que admirar, pois, que a vida nos pareça sem sentido e a felicidade um nome vão e irrisório?
A segunda premissa da moral, como foi entendida pelos moralistas, e que nos parece errônea, é a que considera a atividade humana, em si, como simples meio de atingir o bem.
Dentre as muitas formas que assume essa ideia, a mais popular é a que faz da vida presente uma simples preparação para a vida perfeita futura.
O conceito do homem degradado, por uma falta original obscura, revive nessa ideia, que define a vida como um exílio ou uma prisão, onde o homem, no trabalho e na dor, repara as suas faltas milenares.
A vida presente, explícita ou implicitamente, transforma-se, nessa teoria, em um fardo, em uma tarefa dura e árdua, que sem um regime de penas e recompensas o homem não poderia conduzir até o fim.
Aí está a razão por que a ideia de uma outra vida ainda embala a consciência popular com maior prestígio do que a ideia de um bem a conquistar dentro dessa vida terrena, seja o prazer, seja a virtude ou seja a realização da personalidade. O homem comum e simples prefere logo o céu futuro.
A análise da conduta humana vai-nos deixar perceber o segredo da estranha concepção da vida que os moralistas, em geral, alimentam. A vida para eles é um constante penar, e o mais que nos pode dar a sabedoria humana é uma diminuição desses males por meio de sábios esforços e avisadas renúncias. De fato, se a atividade em si não dá prazer, não é agradável, se agrado e prazer são coisas alheias que vamos comprar com essa atividade - viver é um sacrifício pontilhado, aqui e ali, de raro em raro, de um gozo e uma alegria. E como esse próprio gozo e essa própria alegria em que se põe o prêmio da vida, são, no fundo, incompletos e decepcionantes - o que nos resta senão julgar a vida realmente insuportável, e buscar, no mundo religioso, os sonhos que nos compensem da mágoa de viver?
E com isso, os moralistas desencorajam as mudanças e as transformações, negam valor às experiências novas e buscam emprestar, não sei por que receio, uma significação supersticiosamente sagrada às instituições de nossa época. O terceiro erro das teorias tradicionais de moral está em dar aos seus "princípios" um caráter extra-humano ou, pelo menos, puramente espiritual ou ideal.
A ordem moral é inacessível à fertilização da experiência humana. Os valores morais não podem ser encontrados nessas experiências. O homem vai buscá-los em concepções absolutas que foram, direta ou indiretamente, reveladas ao coração humano.
A moral para ser eficiente e progressiva tem que se fundar na experiência humana.
Que seria a medicina, ainda hoje, repetimos, se fosse governada pelo conhecimento revelado ou por princípios imutáveis? Visamos, aqui, sobretudo, fazer a crítica das doutrinas mais responsáveis por uma concepção falsa da moral e da vida, mas desse longo arrazoado decorre uma consequência geral que vale a pena comentar, em forma de conclusão.
Essa consequência é a de que a vida será boa ou má, conforme a vontade humana.
A vida será boa se a nossa atividade, em si mesma, e por si mesma, for agradável e satisfatória. A atividade não será, deste modo, uma preparação para um bem futuro e remoto, mas, ela mesma, esse bem. Não vamos ser felizes no futuro. Ou seremos felizes agora ou não o seremos nunca. Vivemos no presente e só no presente podemos governar a vida. O futuro é imprevisto e imprevisível. No mundo em movimento e em transformação em que vivemos, a atividade é sempre uma aventura no desconhecido. Os que esperam um mundo em que tudo seja seguro e certo para ser felizes, estão a acalentar a mais vã de todas as esperanças.
À medida que o homem mais conhece e mais se instrui, mais complexo se torna o seu ambiente, de mais incerteza se semeia a sua vida, e mais difícil se torna viver em segurança e em harmonia.
Perca ele, porém, o seu terrível hábito de segurança e certeza. Ganhe, em troca, o sentido dinâmico da nova ordem em que vive. Esteja à altura de suas próprias criações.
A vida é mais vasta, mais complexa, mais rápida, mais intensa e mais trepidante, mas, por isso mesmo, pode ser mais rica, mais cheia, mais acidentada e mais vigorosa.
Busque-se dar à atividade sentido e significação, não desprezando nada que a possa enriquecer com elementos e conhecimentos novos; faça-se uso delicado e constante da inteligência e se tenham sempre em vista os limites da natureza e os laços que a prendem ao mundo e aos demais homens. O procedimento do homem será tanto mais moral, quanto for assim largo, integrado e harmonioso o seu ponto de vista.
E tranquilize-se quanto à felicidade. Ela lhe será dada de acréscimo, se conseguir dar à atividade essa feição compreensiva e unificada. A ansiedade e a dor não desaparecerão da Terra. Nem uma, nem outra, podem, entretanto, impedir a felicidade desde que sejam compreendidas como partes intrínsecas da vida.
Deve-se partir para a vida como para uma aventura. Se se tivesse de aconselhar uma atitude única, aconselharíamos a atitude esportiva. Cada um dos momentos da vida é um jogo com o futuro. Quanto mais armado para a luta, melhor. Vitória e derrota, todas têm, porém, a sua parte de prazer. Mais do que isso. O verdadeiro prazer está na luta. Se bem sucedida, a luta de amanhã será mais interessante. Se a sorte não for favorável, a experiência valeu os momentos vividos, ensinou coisas novas e a expectativa de melhor êxito estará sempre acesa no coração dos homens. O insucesso não os abate, porque contam com ele entre as possibilidades esperadas. Se não existisse, as vitórias perderiam o melhor do seu sabor.
O sofrimento não é senão uma forma de insucesso. Desde que certas condições essenciais de saúde e de conforto possam ser obtidas, o que já é, de certo modo, possível no atual estado da civilização, o irremediável está virtualmente desaparecido da existência.
Os demais sofrimentos devem ser recebidos com uma saudável coragem. Contribuem para dar uma querida nota heroica à vida.
São as sombras que põem em relevo as luzes e as cores da existência...
Referência:
TEIXEIRA, Anísio Spínola. Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a transformação da escola. 5. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.