SISTEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO: UM HISTÓRICO DE MARGINALIZAÇÃO E DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

Por Otaíza de Oliveira Romanelli (Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais)

A luta pela escola no Brasil, desde o momento em que passou a crescer a demanda social de educação, assumiu, a nosso ver, o caráter de verdadeira luta de classes. Ao afirmar isso, não pretendemos dizer que essa luta foi consciente por parte dos estratos sociais em competição. Na verdade, a forma como se expressou e se tem expressado a demanda social de educação, forçando o sistema educacional a abrir suas portas às camadas mais baixas da população, tomou o aspecto de uma luta inconsciente, mas decisiva, das camadas em ascensão por posições de maior relevo. Aliás, consideramos que é esse um dos aspectos da expansão e permaneceu oferecendo em escala maior o mesmo tipo de educação aristocrática e acadêmica da velha ordem, anterior a 1930. É que as novas camadas emergentes viram na escola um instrumento eficaz de ascensão social e, sobretudo, na velha escola acadêmica, a única reconhecidamente capaz de dar status. Foi, pois, em direção a esta que caminhou a demanda. Foi por essa escola livresca que elas passaram a lutar, não evidentemente pelo conteúdo que ela proporcionava, que a elas realmente pouco interessava, mas pela posição social a que poderia guindá-las o aspecto de uma luta de classes. Do ponto de vista das camadas populares, o que elas se propunham era garantir-se o acesso às posições das classes altas. Do ponto de vista destas, o que era preciso ser feito, e o foi, era manter o controle dessa expansão, de forma que ela se fizesse em limites estreitos e assegurasse certo grau de seletividade capaz de, em face da impossibilidade de se conter a demanda, fazer com que subissem apenas os "mais capazes".
É evidente que a expressão aqui não deve ser tomada em sentido literal, já que, na realidade, o sistema não seleciona os melhores. O ensino de baixo nível foi e é decorrência da expansão desordenada de um velho tipo de escola capaz de funcionar à base da improvisação de recursos, quer materiais, quer humanos. Mas a seletividade acentuou-se apesar dessa expansão, e, nesse sentido, serviu-se de mecanismos que estão longe de ser considerados eficientes na escolha dos "mais capazes". Os mecanismos de que se tem utilizado o sistema para manter, atualmente, o alto grau de seletividade do ensino dependem mais da medição da capacidade dos estudantes de lograrem sucesso em testes de probabilidade na múltipla escolha - o que pressupõe treinamento específico nas próprias escolas e nos chamados "cursinhos" - do que da avaliação da educação escolar fundamental. É esse o sentido real e mais profundo da evolução de nosso sistema de ensino: ele teve de oscilar, a contar de 1930, entre os interesses das camadas populares por mais educação, e educação que assegurasse status, e os interesses das classes dominantes, que procuravam conter, de várias formas possíveis, as pressões dessas camadas. Reside aí a razão pela qual o ensino se expandiu, apesar de tudo, mas expandiu-se de forma insuficiente e distorcida.
A manutenção dos padrões de qualidade do ensino, que passou a ser a bandeira de luta das elites, representou em verdade uma forma de conter a explosão demográfica das escolas. Esses padrões, evidentemente, eram padrões referentes a valores culturais da velha aristocracia rural. Por eles, tinham condições de lutar os filhos dessa classe, não os das camadas menos favorecidas. E esses padrões refletiam, evidentemente, os valores e a mentalidade das elites.
Foi por isso que o conceito de "mais capaz" passou a ser medido pela capacidade da população de integrar-se nesses padrões e dominá-los. Em outras palavras, tornava-se mais capaz todo aquele que podia satisfazer as exigências escolares de uma educação livresca, acadêmica, aristocrática, medidas pela capacidade de reter maior número de informações, praticamente vazias para a grande massa. É evidente que a população escolar pertencente à elite, por desfrutar maiores ócios e mais alto padrão de conforto, estava em melhores condições do que as camadas menos favorecidas de competir na luta pela aprovação nos exames e, portanto, pela conquista das vagas nas universidades públicas. Aqui está, pois, uma das razões de nosso alto índice de repetência. E é aqui também que se encontram as raízes da discriminação social promovida pelo sistema. Sim, porque, nessa luta pela escola, o que mais contava não era a capacidade real do estudante, mas sua origem social.
É que, por estarmos ainda longe daquela "uma só sociedade em desenvolvimento", inconsistente que é a viabilidade das camadas populares alcançarem certos valores preconizados pela cultura - como, por exemplo, o da igualdade de oportunidades - as barreiras sociais antepostas à realização desses valores são perfeitamente entendíveis, criando divergências entre o comportamento social e os valores da cultura, entre ascensão social acessível a todos e meios institucionais correspondentes. O sistema escolar brasileiro está a dar um exemplo desse caso de meios institucionais divergentes em relação aos valores preconizados na cultura. Aliás, essa divergência dos meios institucionais em relação aos valores oficiais foi bem analisada por Anísio Teixeira. Na impossibilidade de concretizar institucionalmente os valores proclamados pela cultura, impossibilidade essa causada pelo grau de alienação desses valores, em relação à realidade, passou o sistema educacional a utilizar-se do mero formalismo ritual ou burocrático, como forma de "viver" esses valores. Cumpridas as formalidades, ficavam assim "concretizados" os valores. Foi assim que o Estado passou a reconhecer, como válido, o mesmo ensino dado em todas as escolas, quer tivessem elas ou não as mesmas condições de funcionamento. A proliferação de estabelecimentos improvisados e de baixo padrão deu-se então de forma assustadora. Daí o fato de a pressão da demanda poder, em parte, ser satisfeita. Como o que contava para a demanda era a posição que se podia conquistar, através do diploma "reconhecido pelo Governo", a ela, demanda, pouco interessavam o teor e o nível da educação ministrados por essas escolas.
A divergência entre "valores reais" e "valores proclamados" pode ser patenteada, assim, pela desigualdade de acesso das várias classes sociais às escolas. Na verdade, o direito de todos à educação não passou, na vida real da sociedade, do direito de todos aqueles que se mostrassem capazes, segundo os padrões ditados pelos valores das classes dominantes. Conscientemente ou não, a escola, por seus métodos, pela atitude dos professores, pelas matérias ensinadas, pelos valores que ela privilegia, contribui bastante para entreter a segregação social. Os manuais utilizados na escola primária põem em evidência uma linguagem e uma representação da sociedade familiares aos filhos das classes favorecidas, mas estranhas aos outros. No Brasil, esses aspectos de conteúdo e métodos aplicados ao ensino, segundo os valores alheios aos reais valores das classes populares, são muito responsáveis pelo malogro, na escola, de significativa parcela da população e pelas condições de desigualdade com que lutam essas classes pelo acesso à escola.
Concluindo, podemos afirmar que, se, por um lado, foram notáveis os progressos alcançados com a expansão do ensino, nestas últimas décadas, não foi possível, por outro lado, resolver alguns de nossos problemas mais graves, como, por exemplo, o da necessária retenção de toda a população o mínimo indispensável para aquisição de uma educação elementar satisfatória; o da abrangência, pela escola média e superior, da demanda social de educação, pelo menos na medida em que essa demanda passa do estado potencial para o estado efetivo, e, finalmente, o da democratização efetiva do ensino, de modo que o torne acessível a todas as camadas sociais, pelo menos na proporção em que estas entram no conjunto da população.
Referência:
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2006.



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