SOBRE AS DIFERENÇAS ENTRE OS CONCEITOS DE UTOPIA E IDEOLOGIA: É POSSÍVEL PENSAR SOCIEDADES DEMOCRÁTICAS E MODERNAS SEM AS UTOPIAS? COMO REFLETIR O FUTURO DAS SOCIEDADES PARA ALÉM DAS IDEOLOGIAS?

Por ANÍSIO SPÍNOLA TEIXEIRA (Caetité-Bahia, 12 de julho de 1900 - Rio de Janeiro, 11 de março de 1971. Jurista, intelectual, educador e escritor brasileiro).
Temos, em relação ao mundo físico, aplicado corajosamente o método científico. Mas em relação à conduta própria do homem, conservamos os velhos métodos pré-científicos de simples condicionamento mecânico e irracional. Parece-me que as aludidas atitudes tiveram seu reflexo no pensamento geral da humanidade nos últimos cem anos. A primeira atitude gerou, além do desenvolvimento científico moderno, as grandes correntes de pensamento utópico em relação à organização social e econômica. A segunda atitude, supostamente realista, gerou os movimentos ideológicos, que sucederam ao pensamento utópico e, a meu ver, o deformaram e o tornaram substancialmente violento e irracional. Devo esclarecer que não tomo os termos de utopia e ideologia no sentido preciso com que os emprega Manheim, mas com a alteração sugerida por David Riesman, jovem pensador americano, cuja lucidez me impressiona tanto mais quanto lhe faltam as consagrações acadêmicas do grupo, de certo modo, tão pouco original dos pensadores sociais de nossa época. Riesman define utopia "como um conjunto de crenças racionais, de interesse no fim das contas da pessoa que as alimenta, numa realidade potencial embora não existente; tais crenças não devem violar nada que saibamos sobre a natureza, inclusive a natureza humana, embora possam extrapolar a presente tecnologia e devam transcender a presente organização social". "Ideologia, ou o pensamento ideológico", define-o Riesman, "como um sistema irracional de crenças, alheias no fundo ao interesse da pessoa que as aceita, mas a que esta pessoa adere sob a influência de algum grupo, em virtude de suas próprias necessidades irracionais, inclusive o desejo de submeter-se ao poder do grupo doutrinador".
Toda utopia pode ter germens de erro, que a podem levar até à ideologia. E toda ideologia tem germens de verdade, que lhe emprestam a aparente plausibilidade, indispensável à obra de sua doutrinação.
O pensamento utópico da humanidade corresponde, na verdade, à substituição da utopia suprarracional ou sobrenatural de outra vida, dominante em toda a Idade Média e ainda hoje corrente – nos EE. UU. 95% das pessoas declararam crer na sobrevivência do homem após a morte – por uma utopia natural e racional, aqui e agora fundada nas virtualidades e potencialidades dos conhecimentos humanos existentes. Aldous Huxley acentua, em sua famosa caricatura do mundo de amanhã, que o perigo das utopias é que elas se tornaram realizáveis. Se a sua confiança no homem fosse outra, deveria concluir que este seria o seu valor, pois com a possibilidade da sua realização estaria aberto o caminho para as suas revisões e os seus progressos, no caso de resultados infelizes ou inesperados. No fundo, porém, Huxley no seu livro não estava tanto a desdobrar o plano de uma utopia quanto de uma ideologia, com o seu brutal e correlativo condicionamento mecânico do homem. O seu "Admirável Mundo Novo" é uma sátira aos movimentos ideológicos e não aos utópicos. Aliás, o próprio Huxley dá-nos um exemplo de bom pensamento utópico no seu "Ciência, Liberdade e Paz".
Caracteriza, com efeito, o pensamento utópico uma confiança especial no homem e na razão, graças à qual não parece a tais pensadores tão intransponível, quanto hoje nos querem fazer crer os criadores de ideologias, a barreira dos mitos e das irracionalidades humanas. Jamais um pensador utópico idealizaria o "Admirável Mundo Novo" ou o "1984" de George Orwell. Tais caricaturas são caricaturas exatamente dos movimentos ideológicos, com os quais se busca condicionar mecanicamente o comportamento humano, com apoio na premissa de que esse comportamento humano não é racional (A premissa dos pensadores utópicos seria a de que tal comportamento é potencialmente racional).
Quando Bertrand Russell escreveu os seus ensaios sobre as sociedades artificialmente criadas, ensaios que deram lugar às sátiras e caricaturas de Aldous Huxley e de George Orwell e aos ensaios de James Burnham ("Managerial Revolution") ou de Whyte ("Organization Man"), recordo-me da indignação de H. G. Wells – tão admirável representante do pensamento utópico! – com as previsões apaixonadas e deformantes de B. Russell. É que o filósofo inglês não estava fazendo utopia, mas "realismo" e advertindo com a previsão do pior. Vede bem que os líderes que imagina B. Russell para as suas fantasias científicas não são pessoas de formação científica, mas criaturas enérgicas e apaixonadas pelo poder, que reproduzem, com os novos meios científicos, os objetivos estreitos e egoístas de seus antecessores.
De qualquer modo, não creio que B. Russell pudesse imaginar Jefferson ou Owen criando o estado nazista ou o estado estalinista. E se lhe fosse possível imaginar Marco Aurélio presidindo os Estados Unidos ou a Rússia, também não creio que a ciência mais poderosa dos nossos tempos fosse transformar Marco Aurélio e fazê-lo desejar uma catástrofe final para decidir quem seria o dominador do mundo.
O pensamento utópico, desde que surgiu, com Platão, nunca imaginou que a utopia se realizasse assim que um Alexandre ou um Napoleão tivessem armas mais poderosas. O pensamento utópico sempre considerou essencial que Alexandre ou Napoleão pudessem ter as ideias de um Asoka ou de um Marco Aurélio.
A democracia dos séculos XVIII e XIX constituía, em seu início, algo de essencialmente utópico. O socialismo anterior a Lênin era de natureza utópica. Já o marxismo-leninismo parece-me essencialmente ideológico. E o neocapitalismo, uma réplica ideológica ao marxismo-leninismo. A essência do pensamento ideológico ou das ideologias é a sua natureza irracional, a ser inculcada por doutrinação e realizada pela força. É a utilização dos resultados da ciência para a manipulação da opinião pública, segundo processos mais sutis, mas essencialmente idênticos ao do passado pré-científico do homem, para a manutenção do status quo ou a realização de algum plano brutal de desenvolvimento inumano. O fascismo foi a sua primeira grande demonstração. Mas o comunismo, sempre que recusa crer na possibilidade do seu triunfo pacífico, pela persuasão e pela razão, e deposita sua fé nos meios de doutrinação e de força faz-se ideológico e não utópico, no sentido em que estamos procurando caracterizar esses termos. O comunismo somente seria aceitável se aceitasse os métodos da razão e da persuasão socialista.
Vistas sob esse ângulo, não parece difícil discriminar na cena contemporânea as correntes utópicas e as correntes ideológicas. O relativo descrédito da corrente utópica provém de uma certa desilusão moderna a respeito da razão.
A democracia facilitou o capitalismo, mas este nunca foi de sua essência. As grandes e devastadoras críticas a essa fase econômica da humanidade foram feitas no século XIX e nos começos do século XX. A própria América do Norte, que, nesse período, era terra edênica de todo o mundo, graças à fronteira de progresso que o regime ali abrira, sofreu de Veblen, como economista, e de Mark Twain, como satírico, as críticas mais implacáveis que poderia sofrer. Como esse capitalismo não se havia ainda endurecido em ideologia, mas, era como uma utopia, com as amplitudes geográficas de sua conquista, amplitudes que redimiam as suas injustiças, nenhum McCarthy ali surgiu para abrir a Inquisição de novo contra os Mark Twain ou os Veblen. A aceitação do capitalismo e de sua ética darwinista era algo de óbvio, enquanto as oportunidades fossem tantas, que a incrível teoria da vida como uma corrida com prêmios para uns poucos pudesse parecer algo de sensato. Os que perdessem tinham outras corridas a correr. E quando não tivessem era que não era essa a vontade de Deus.
Com o fechamento da "fronteira" para as sempre renovadas corridas, o capitalismo perdeu todo sentido utópico e se cristalizou em uma ideologia a ser defendida pela propaganda e no fim de contas pela força. A realidade é que o fim natural da democracia seria o socialismo. Os processos revolucionários e violentos de realizar o socialismo é que acabaram por galvanizar o capitalismo, justificando-lhe o uso da força como recurso de sobrevivência. Se ambos tinham de ser regimes de força, a diferença entre os dois deixaria de ser substancial. E o homem, esmagado entre estes dois "realismos", perdeu a confiança no seu pensamento. Ou passou a ter medo de confiar na inteligência, pois já não era livre de usá-la vigorosa ou audaciosamente.
Desapareceram os pensadores utópicos, isto é, os pensadores capazes de especular livremente sobre as alternativas e possibilidades que os novos conhecimentos e as novas tecnologias abriam para a humanidade. Para essa especulação, fazia-se e faz-se indispensável o gosto pelo pensamento largo e generoso, uma atitude de simpatia e confiança no progresso dos conhecimentos humanos, uma capacidade criadora em imaginar ou antever as novas perspectivas que poderiam abrir, conforme o uso que deles se fizesse e, sobretudo, uma confiança no homem como ser capaz de escolhas inteligentes e de plasticidades insuspeitadas em seu desenvolvimento intelectual e em seu aperfeiçoamento afetivo e espiritual. Toda essa forma de pensar se fez perigosa. As ideologias, brutalmente fundadas no que é e no que existe, dividiram dramaticamente o mundo. Pensar-se no que devia ser passou a ser uma forma de ingenuidade, no melhor dos casos, ou de simples escapismo. A ciência social, como Napoleão, só via e só acreditava no que existe, no que é. Qualquer saída daí, só se podia fazer violentamente. Ou o status quo, ou a revolução. E esta revolução não buscaria o que devia ser – de antemão condenado como impossível – mas o que podia ser. Estrangulado pelas ideologias, permiti que o repita, o pensamento humano científico e filosófico se fez ou especializado, isto é, competente apenas em pequenos campos, ou "realista", isto é, defensor do status quo, do mal menor, ou pura e simplesmente escapista. Generosidade de pensar, entusiasmo imaginativo passaram a não parecer "bem". Quanto mais educada seja a pessoa, tanto mais elegante, tanto mais próprio fica uma atitude de apatia, ou indiferença ou descrença. Pensar audaciosamente é, pelo menos, algo de leviano. Que sucedeu, então? Ficou com os tolos a elaboração dos planos largos e amplos a respeito do futuro. Daí os livros últimos sobre tecnocracias, revoluções de gerentes, reinos de burocratas etc., etc.
Restauremos o pensamento utópico, livre e razoável, fundado no conhecimento e nas potencialidades analisadas desse conhecimento – não se confunda, com efeito, utopia com escapismo – a utopia é um plano científico de possibilidades reais – confiemos no homem e no poder de esclarecimento do saber de natureza científica, ampliemos a área desse saber ao campo da economia, da política e da moral, criemos os métodos próprios desse novo saber e marchemos para a frente, sem medo nem cegueira, guiados pelo sonho humano de uma vida cada vez mais ampla, mais rica e mais harmoniosa, até onde o pensamento nos puder levar, nas vastidões hoje antevistas dos astros e das estrelas.
O medo do nosso tempo provém da teoria da mudança social pela força. Se passarmos a pensar em realizá-la pela inteligência, se perdermos a ideia sinistra de que o homem é um ser condicionado, a ser manipulado por "slogans" mais ou menos irracionais, sem capacidade de resistência nem de razão e mantido em ordem pela conformidade mental e adaptação mecânica; se robustecermos a confiança na inteligência e no indivíduo, se o estimularmos a pensar e refletir e não a se conformar, se lhe dissermos que a organização é inevitável, mas sua resistência à organização é imprescindível e que sua vida há de ser sempre não a aquiescência, mas a luta entre o sonho racional (ou seja, a utopia) e a realidade, aquele sempre mais e mais próximo, mas nunca atingido, então, sim, teremos restaurado as condições para progredir sem complacência, sonhar com eficácia e esperar com lucidez...
Referência:
TEIXEIRA, Anísio Spínola. Variações sobre o tema da liberdade humana. In: Revista Anhembi, São Paulo, n. 90, v. XXX, mai. 1958, p. 470-484.



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