SOBRE EDUCAÇÃO E POLÍTICA NUMA DEMOCRACIA: OS EQUÍVOCOS DO POLITICISMO PEDAGÓGICO E/OU DO PEDAGOGISMO POLÍTICO

Por DERMEVAL SAVIANI (Santo Antônio de Posse - SP, 1943. Professor emérito da UNICAMP e coordenador geral do Grupo Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” – HISTEDBR)

Uma análise, ainda que superficial, do fenômeno educativo nos revela que, diferentemente da prática política, a educação configura uma relação que se trava entre não-antagônicos. É pressuposto de toda e qualquer relação educativa que o educador está a serviço dos interesses do educando. Nenhuma prática educativa pode instaurar-se sem esse suposto.
Em se tratando da política, ocorre o inverso. A mais superficial das análises põe em evidência que a relação política se trava, fundamentalmente, entre antagônicos. No jogo político defrontam-se interesses e perspectivas mutuamente excludentes. Por isso em política o objetivo é vencer e não convencer.
Inversamente, em educação o objetivo é convencer e não vencer. O educador, seja na família, na escola ou em qualquer outro lugar ou circunstância, acredita estar sempre agindo para o bem dos educandos. Os educandos, por sua vez, também não veem o educador como adversário. Acreditam, antes, que o educador está aí para ajudá-los, para possibilitar o seu desenvolvimento, para abrir-lhes perspectivas, iniciá-los em domínios desconhecidos. Ainda quando tais características são negadas pelos fatos da superfície, elas permanecem como suporte, como a estrutura, como o substrato que permite à relação manter-se educativa. Assim, a rebeldia dos educandos tende a ser encarada pelo educador como um desafio que lhe cumpre superar, conduzindo-os à percepção de que eles próprios são os maiores prejudicados com tal comportamento. Já no plano político, a rebeldia da classe dominada tende a ser interpretada pela classe dominante como rebelião e, como tal, reprimida pela força.
As diferenças anteriormente assinaladas nos permitem entender por que, em política, seria ingenuidade acreditar que o adversário está na posição oposta porque está equivocado; porque não compreendeu o seu erro e a validade da proposta contrária, compreensão esta que, uma vez atingida, o levará a aderir à proposta que atualmente combate. Por isso, em geral, o fato de um partido perder uma batalha (eleições, propostas etc.) não o demove de sua posição; ao contrário, ele passa para a oposição e continua fustigando o partido contrário buscando alterar a correlação de forças para, na oportunidade seguinte, reverter a situação. Em suma, ele pode ser vencido, mas não convencido. Parece claro que em educação o comportamento é claramente diferente do descrito anteriormente. Um professor, por exemplo, acredita que, se ele fundamentar adequadamente os assuntos em torno dos quais se trava sua relação com os alunos; se ele expuser de modo claro, se suas posições forem consistentes e os alunos chegarem ao entendimento de seu significado, eles tenderão a concordar com ele. Se isso não ocorrer, é normal atribuir o desentendimento a uma insuficiente compreensão, a algum tipo de equívoco. Por isso, é comum na relação pedagógica expressões do tipo: "se eu não estiver enganado...","se vocês me convencerem que estou errado..." etc., comportamento, no mínimo, inusitado numa assembleia ou num palanque.
Com as considerações anteriores espero ter esclarecido a não-identidade e, em consequência, a distinção entre política e educação. Trata-se, pois, de práticas diferentes, cada uma com suas características próprias. Cumpre, portanto, não confundi-las, o que redundaria em dissolver uma na outra (a dissolução da educação na política configuraria o politicismo pedagógico do mesmo modo que a dissolução da política na educação implicaria o viés do pedagogismo político).
Entretanto, se se trata de práticas distintas, isso não significa que sejam inteiramente independentes, dotadas de autonomia absoluta. Ao contrário, elas são inseparáveis e mantêm íntima relação.
Primeiramente é preciso considerar a existência de uma relação interna, isto é, toda prática educativa, como tal, possui uma dimensão política assim como toda prática política possui, em si mesma, uma dimensão educativa.
A dimensão política da educação consiste em que, dirigindo-se aos não-antagônicos, a educação os fortalece (ou enfraquece) por referência aos antagônicos e desse modo potencializa (ou despotencializa) a sua prática política. E a dimensão educativa da política consiste em que, tendo como alvo os antagônicos, a prática política se fortalece (ou enfraquece) na medida em que, pela sua capacidade de luta, ela convence os não-antagônicos de sua validade (ou não-validade), levando-os a engajarem-se (ou não) na mesma luta. A dimensão pedagógica da política envolve, pois, a articulação, a aliança entre os não-antagônicos, visando à derrota dos antagônicos. E a dimensão política da educação envolve, por sua vez, a apropriação dos instrumentos culturais que serão acionados na luta contra os antagônicos.
Em segundo lugar, cabe considerar que existe também uma relação externa entre educação e política, ou seja, o desenvolvimento da prática especificamente política pode abrir novas perspectivas para o desenvolvimento da prática especificamente educativa e vice-versa. Configura-se, aí, uma dependência recíproca: a educação depende da política no que diz respeito a determinadas condições objetivas como a definição de prioridades orçamentárias que se reflete na constituição-consolidação-expansão da infraestrutura dos serviços educacionais etc.; e a política depende da educação no que diz respeito a certas condições subjetivas como a aquisição de determinados elementos básicos que possibilitem o acesso à informação, a difusão das propostas políticas, a formação de quadros para os partidos e organizações políticas de diferentes tipos etc.
Por fim, é de fundamental importância levar em conta que as relações entre educação e política têm existência histórica; logo, só podem ser adequadamente compreendidas enquanto manifestações sociais determinadas. E aqui se evidencia, por um outro ângulo, a inseparabilidade entre educação e política. Com efeito, trata-se de práticas distintas, mas que ao mesmo tempo não são outra coisa senão modalidades específicas de uma mesma prática: a prática social. Integram, assim, um mesmo conjunto, uma mesma totalidade. Em sua existência histórica nas condições atuais, educação e política devem ser entendidas como manifestações da prática social própria da sociedade de classes. Trata-se de uma sociedade cindida entre interesses antagônicos. Está aí a raiz do primado da política. Com efeito, já que a relação política se trava fundamentalmente entre antagônicos, nas sociedades de classes ela é erigida em prática social fundamental.
A prática política apoia-se na verdade do poder; a prática educativa, no poder da verdade. Ora, a verdade (o conhecimento), nós sabemos, não é desinteressada. Mas nós sabemos também que, numa sociedade dividida em classes, a classe dominante não tem interesse na manifestação da verdade, já que isso colocaria em evidência a dominação que exerce sobre as outras classes. Já a classe dominada tem todo interesse em que a verdade se manifeste porque isso só viria a patentear a exploração a que é submetida, instando-a a engajar-se na luta de libertação.
Eis aí o sentido da frase "a verdade é sempre revolucionária". Eis aí também por que a classe efetivamente capaz de exercer a função educativa em cada etapa histórica é aquela que está na vanguarda, a classe historicamente revolucionária. Daí o caráter progressista da educação. É este o sentido da afirmação de Gramsci segundo a qual "a burguesia não consegue educar os seus jovens", os quais se deixam atrair culturalmente pelos operários; "os jovens [...] da classe dirigente [...] se rebelam e passam para a classe progressista, que se tornou historicamente capaz de tomar o poder" (GRAMSCI, 1968, p.52).
A importância política da educação reside na sua função de socialização do conhecimento. É realizando-se na especificidade que lhe é própria que a educação cumpre sua função política. Ao dissolver-se a especificidade da contribuição pedagógica, se anula, em consequência, a sua importância política.
Referência:
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação política. 42 ed. Campinas: Autores Associados, 2012.



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