VI NASCER UM DEUS

Por CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (Itabira-MG, 1902 - Rio de Janeiro-RJ, 1987. Poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX. Foi um dos principais poetas da segunda geração do Modernismo brasileiro)

O Cristo é sempre novo, e na fraqueza deste menino
há um silencioso motor, uma confidência e um sino.
Nasce a cada dezembro e nasce de mil jeitos.
***
Temos de pesquisá-lo até na gruta de nossos defeitos.
Inventou-se menino para ser ao menos contemplado,
senão querido (pois amamos o nosso modo limitado)
e de criança temos pena, porque submersos garotos
ainda fazem boiar em nós seus barcos rotos.
***
Ó lapinha,
menino de barro,
deus de brinquedo,
areia branca de córrego,
musgo de penhasco,
Belém de papel,
primeira utopia,
primeira abordagem,
do território místico,
primeiro tremor.
Vi nascer um Deus.
Onde, pouco importa.
Como, pouco importa.
Vi nascer um Deus,
em plena calçada,
entre camelôs;
na vitrine da butique
sorria ou chorava,
não sei bem ao certo;
a luz da boate
mal lhe debuxava
o mínimo perfil.
Vi nascer um Deus
entre embaixadores,
entre publicanos,
entre verdureiros,
entre mensalistas,
no Maracanã,
em Para-lá-do-Mapa,
quando os gatos rondam
a espinha da noite,
os mendigos espreitam
os inferninhos
e no museu acordam as telas
informais
e o homem esquece
metade da ciência atômica:
vi nascer um Deus.
O mais pobre,
o mais simples.

Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Vi nascer um Deus. In: MURARO, Rose Marie; CINTRA, Raimundo (Org.). As mais belas orações de todos os tempos. São Paulo: Pensamento, 2013, p. 172-174.



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