INTELIGÊNCIA, INFORMAÇÃO E CRIAÇÃO: REFLEXÃO SOBRE AS FALHAS DO ENSINO TRADICIONAL BRASILEIRO E A DIFERENÇA ENTRE AS MÁQUINAS, OS ANIMAIS IRRACIONAIS E OS SERES HUMANOS
Por Maurício Rocha e Silva (Rio de Janeiro-RJ, 1910 – Ribeirão Preto-SP, 1983. Médico, escritor, cientista em bioquímica e farmacodinâmica, professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, fundador e coordenador até 1964 do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília – UnB, membro titular da Academia Brasileira de Ciências e co-fundador da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SPBC).
Tenho sérias dúvidas sobre o que deve ser chamado de inteligência. Nada mais inteligente do que os movimentos de fuga de um ratinho quando é caçado na cozinha, à noite, e, se avaliarmos inteligência pelos testes habituais, certamente, o animal terá um QI acima do de seu caçador, especialmente, se se tratar de senhorita.
Ao contrário, a criação original, não raro, ou quase sempre, se origina de um fog intelectual e estou certo de que o homem, na sua fase mais aguda de produção original, dificilmente passaria nos testes habituais impostos aos animais e ao próprio homem para resolver pequenos problemas da vida quotidiana, como encontrar o seu caminho em labirintos, apertar uma alavanca quando sinta fome ou sede, resolver problemas fáceis de aritmética e de álgebra e tutti quanti os psicólogos experimentais utilizam nos seus testes de avaliação quantitativa da inteligência. São conhecidas as anedotas atribuídas a Newton quando segurava o ovo na mão esquerda, enquanto cozinhava o seu relógio em banho-maria, ou mandava abrir dois orifícios na porta, um grande e outro pequeno, para deixar passar a gata com os seus filhotes.
O homem, quando utiliza ou está a ponto de utilizar os seus recursos intelectuais, não raro se encontra na situação do motorista que deve ler um letreiro na beira da estrada mergulhada no mais denso nevoeiro. Se se aproxima demasiado do poste onde se encontra o letreiro, está ameaçado de se chocar de encontro ao mesmo. Se conserva distância, deixará de avaliar todo o perigo com que se defronta na estrada, por não ter lido distintamente o aviso contido no letreiro. O que habitualmente chamamos de inteligência é a capacidade de ler com clareza o letreiro, em dia de céu aberto e tomar rapidamente a decisão, de acordo com a situação. Nessas circunstâncias qualquer animal superior e mesmo alguns impropriamente chamados inferiores (as abelhas, por exemplo), suficientemente treinados, podem tomar as mesmas decisões desde que o sinal seja facilmente interpretável pelos mesmos, isto é, seja luminoso, sonoro, olfativo, gustativo ou táctil. O que se poderia esperar do homem dotado do poder de criação original seria o de interpretar o sinal, quando o mesmo é apenas visível através da neblina, distinguindo-se mal, ou nada, do que chamaríamos ‘ruídos espúrios’ (troncos de árvores, estacas do longo da estrada, reclames luminosos, etc.) caso em que o animal, por mais treinado que seja é incapaz de fazê-lo.
Se o que queremos é uma imagem a ser televisionada numa estação comercial, teremos que pensar, antes de tudo, na clareza da imagem, impedir tanto quanto possível a deformação da mesma por sinais originados no próprio aparelho, com reforço daqueles que contribuem para melhorar a nitidez da imagem ou aumentar a sua iluminação. Esse é o processo habitualmente desejado no estudante do qual não se espera mais do que a transmissão pura e simples das imagens que aprendeu, que lhes foram incutidas através do input. Pode-se dizer que é essa uma didática superada, mesmo nas classes mais elementares. Encontramos esse tipo de comportamento no indivíduo decorador, o qual, durante toda a vida se comporta como um receptor de rádio ou de televisão, às vezes dos mais primitivos, limitando-se a transmitir o que recebeu no input, com a agravante de muitas vezes perturbar a clareza da imagem por ruídos espúrios que lhe vêm de uma memória não muito crítica. São indivíduos que poderíamos classificar como "autômatos sem comparador". É claro que a muitos professores se poderia aplicar essa denominação e todo ensino que não é baseado no trabalho individual de pesquisa poderia ser catalogado nessa categoria.
Se queremos algo de mais avançado, devemos procurar injetar na imagem transmitida alguns ruídos que consideramos úteis e que podem estar armazenados na memória de qualquer um, da sua observação espontânea do mundo exterior. Esses flashes de gênio são comuns na classe quando o aluno, subitamente, corrige ou modifica a imagem que lhe foi transmitida por uma observação que tenha feito quer espontaneamente, quer por ter lido algo de estranho em algum livro que lhe caiu nas mãos. Se a deformação é correta, e se o professor é de boa qualidade, esse acontecimento que chamaríamos de "micro genial" pode constituir uma boa garantia de que o aluno é de qualidade superior, e, certamente, àquele que se limita a transmitir uma imagem pré-fabricada.
Será mais cômodo desenvolver máquinas mais e mais complexas, procurando realizar o trabalho inventivo do cérebro humano, ou seria mais razoável que a humanidade continue pensando e procurando desenvolver a extraordinária potencialidade do cérebro humano? A máquina será sempre um complemento, ou chegaremos ao ponto de desenvolver cérebros eletrônicos cada vez mais complexos e com eles realizar o trabalho reservado ao gênio inventivo do cérebro humano? É possível que autômatos que possuam tantas unidades quantas as que existem no cérebro humano seja possível realizar trabalhos de invenção que até agora só o gênio humano foi capaz de fazê-lo. Mas haverá sempre o problema de como introduzir na máquina a seleção que depende de qualidades intelectuais, como o senso crítico, o sentido de distinguir o falso do verdadeiro e o trabalho de seleção das potencialidades futuras não suspeitadas por nenhuma das informações introduzidas no seu input ou armazenadas na sua memória, porque a tanto monta o trabalho de inventar o cérebro humano.
Ao computador tem que se dar o problema formulado e definido e mais os dados necessários à solução, cabendo-lhe apenas as operações pelas quais os dados sofrem certa manipulação indispensável para as conclusões parciais, que em complicado processo levam à conclusão final a ser feita pela mente humana. Para muita gente a vida transcorre no nível do computador. O importante no caso é observar-se a diferença entre os dados já existentes, o saber já adquirido, destinado a conter e delimitar a existência, e a aquisição do saber ou a descoberta do saber. O ato de criação só existe verdadeiramente nessa segunda fase. Todo o debate sobre o ensino gira em torno da caracterização dessa segunda fase, em que o homem não está apenas a viver inteligentemente, mas a pensar. Nesse sentido é que se diz que se nos pomos a pensar, pomos em perigo o mundo. Essa atividade de pensar não é apenas difícil e pungente para quem a exerce, mas perigosa para a ordem reinante das coisas.
Referência:
TEIXEIRA, Anísio Spínola; SILVA, Maurício Rocha e. Diálogo sobre a lógica do conhecimento. São Paulo: EDART, 1968.
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