POR UMA NOVA ATITUDE MENTAL NA ERA CIENTÍFICA

(Para uma crítica ao dogmatismo e fundamentalismo religioso e às atitudes negacionistas em relação à ciência)

Por Anísio Spínola Teixeira (Caetité-Bahia, 12 de julho de 1900 - Rio de Janeiro, 11 de março de 1971. Jurista, intelectual, educador e escritor brasileiro).
O progresso industrial e o volume de avanço científico estão transformando todos os aspectos da vida. As comunicações alteraram todos os quadros anteriores. A participação da mulher na civilização trouxe outras mudanças radicais. A interdependência entre os homens devido à produção em massa e à divisão do trabalho revolucionou outros aspectos da sociedade. As cidades, como gigantescas concentrações humanas, dão faces novas à vida.
Tudo isso devido à aplicação da ciência à civilização humana.
De sorte que a primeira atitude nova do homem foi a reivindicar o pensamento como instrumento eficiente de controle das forças físicas e das forças sociais. Ao invés do homem incapaz e acorrentado, a estender os braços para o céu, em súplicas a um poder superior que lhe dê, por meio de uma revelação, governo, organização e ideais, o novo aspecto da civilização apresenta um homem dotado de forças inumeráveis, multiplicando, pela indústria e pela ciência, o seu elementar e precário poder, por dez, por cem, por mil.
A investigação humana revelou que o universo é sujeito a leis ou "continuidades de processo", e que o conhecimento dessas leis importa no poder de governá-lo em última instância. A primeira atitude nova do homem é, pois, a de confiança no pensamento, quando subordinado às leis do método científico. A prova a que esse método submete as conclusões da análise mental revelou ser absolutamente segura. Tal instrumento de prova veio libertar o homem.
Como extensão desse fato, o homem passou a ver que ele, em última análise, é, de certo modo, o regulador das coisas. Que todas as instituições, desde a família, a religião ou o Estado, são criações suas, sujeitas, portanto, ao mesmo regime de provas a que submete os seus pensamentos e a sua ação. Assim, como o método científico dá resultado na sua conduta com o mundo físico, deverá dar em relação aos fatos do mundo social ou moral.
Esse passo correspondente ao passo mais decisivo. O homem começou a julgar as instituições pelas suas consequências. Nada é sagrado ou invulnerável ao seu exame. Tudo pode ser mudado. As consequências das coisas são o único teste de sua legitimidade ou veracidade.
É com essa mentalidade que ele começa a reorganizar o mundo, não somente no espetacular aspecto material, mas nas mais delicadas molas morais e sociais que por muito tempo o governaram.
Em vez dos sistemas autoritários que os nossos costumes, pacientemente, montaram e a que obedecíamos porque as coisas deviam ser assim, passamos a lançar um atrevido porquê contra tudo que nos queriam impor. E é essa a história da "terrível" geração moderna que tanto está a assustar os velhos moralistas. A geração nova está iniludivelmente empenhada em tudo reconstruir. As questões são tão ousadas que não há material adequado para lidar com elas. O recurso é o processo de experiência e erro. É nesse processo que está empenhada toda a geração nova, essa geração privilegiada de pioneiros que está refazendo o mundo. Aparentemente, o observador pessimista poderá ver apenas licença no mundo moral, desorganização da família, onda crescente de crimes, instabilidade social e proximidade de catástrofes. Mas se penetrar mais fundo no mundo social, se viver entre a mocidade das universidades, se ver como os novos problemas são estudados com uma seriedade e uma liberdade novas, se perceber como o movimento não é o de abandono de toda autoridade, mas o de substituição de uma autoridade imposta e externa por uma autoridade aceita e interna, esse observador poderá adivinhar a extensão e a sinceridade do movimento.
Por outras palavras, é o velho debate entre a razão humana e a revelação divina que, em essência, está em caminho de se resolver. Depois das cenas mais agitadas desse conflito entre ciência e religião, nos fins do século XIX, houve um movimento que tentou conciliar as duas correntes e negar a contradição entre as duas filosofias. Os fatos mostram que é uma evasão ao problema a tentativa conciliatória e que não há terreno comum onde os dois princípios se possam encontrar: a última palavra caberá à razão humana e vencerá o espírito científico, ou caberá a última palavra à revelação e vencerá a religião, como é hoje entendida.
Galileu já fora vítima, como Sócrates muito antes também o fora, dessa luta entre liberdade de pensamento e autoridade ou entre razão e fé.
Se existe um corpo de fatos e princípios revelados por Deus ao homem, a razão humana tem que pensar baseada nessas premissas inalteráveis. Se as suas conclusões discordarem dessas premissas é que estão erradas. Em suma, acima da razão e da ciência, está esse corpo de conhecimentos, que é, em definitiva análise, o teste e a prova de toda a verdade. Se, porém, é à razão humana que cabe, em última instância, a palavra decisiva, a revelação não pode ser aceita. Está claro que se pode admitir, embora não pareça provável, que a razão venha afinal a chegar às mesmas conclusões da revelação. Mas, mesmo assim, a revelação fica destruída. Aqueles fatos passarão a ser verídicos, porque a razão os confirmou, e não por terem sido revelados. Com tal distinção, queremos apenas acentuar que o conflito é absolutamente verdadeiro e que eu não vejo meio de conciliação entre o espírito científico e o espírito que eu chamarei de sobrenatural, por isto que este se esteia em sua argumentação em uma série de premissas reveladas e, como tais, inquestionáveis, dogmáticas. A tentativa mais familiar de conciliação é a que se estriba na afirmação de que os campos de conhecimento para a razão e para a fé são diversos, podendo assim uma e outra coexistirem pacificamente. Isso é uma evasão grosseira do problema e, na realidade, é a natureza, a função e o destino humanos que constituem a matéria nuclear dessas duas filosofias. Cada ato humano terá esta ou aquela direção, conforme admitirmos que é a revelação divina ou o julgamento humano que dirige a vida do homem na terra.
O modernista afirma que devemos ter fé na razão, mas não em suas conclusões. A razão é o único instrumento para a conquista da verdade. Mas essa verdade, longe de ser absoluta e rígida, é essencialmente aproximada, progressiva e mutável. Fé na razão significa confiança na sua faculdade de se corrigir a si mesma. Em vez de corpo de conhecimentos certos e inalteráveis, que se pudesse, de vez, fixar e impor a todos os homens, o que se possui é um corpo de conhecimentos incertos e alteráveis, em constante progresso e em perpétua mutação. A verdade de hoje não será verdade amanhã e a verdade de amanhã já não será, talvez, verdade um pouco mais adiante. Assim, livre exame não é uma simples conquista política, mas o elemento essencial do processo do pensamento humano.
Tal princípio ainda mais particularmente acentua a natureza irreconciliável do conflito entre o fundamentalista e o modernista. Verdade significa coisas diversas para essas duas mentalidades.
Verdade, como coisa absoluta, não só não existe, como não pode existir, para o modernista. O mundo em que vivemos é tão essencialmente precário e vário, que a noção de absoluto não tem a mais ligeira base de realidade. Absoluto é uma pura construção mental, nascida na cabeça do homem como um contraste entre o que é e o que lhe parecia dever ser.
A visão religiosa da vida como finita e limitada seria perfeitamente realista se não fosse a perversão que lhe impõe a noção de que é apenas preparatória para uma outra vida, infinita e real por excelência. Tal dualismo rouba ao homem, para sempre, a possibilidade da compreensão da existência como uma coisa susceptível de controle e governo, e de ser tornada, assim, serena e feliz por uma sábia aceitação. A permanente revolta do homem contra a vida nasceu diretamente das concepções fundamentais da religião, que inventaram a legenda de uma queda original para interpretar o caráter terreno da existência, em contraste com outra vida de plenitude e de felicidade.
A natureza de certos organismos vivos é de tal ordem que lhe permite atividades singulares nas suas reações com o meio, atividades que se elevam até o nível mental. A existência de tais atividades, porém, não justifica, realisticamente, que se apele para nenhuma "entidade" especial que venha a ser a alma ou o espírito, aparentemente tão inexistente. A conciliação da natureza do homem com a natureza do mundo não se podia fazer enquanto se acreditasse o homem portador de uma alma feita para um mundo diferente deste em que vivemos. Alterada tal concepção, o ajustamento se fará, com menos riscos do que se pensava.
Trata-se de aceitar a realidade tal qual é, o que, de logo, aproximará o filósofo moderno do campo da verificação ordinária do homem comum, e lhe permitirá um programa de ação, livre dos conflitos, das inquietações e dos dualismos das velhas filosofias e religiões. Por certo é a nova filosofia, uma filosofia de humildade, por isso que não empresta ao homem nenhuma divindade, nem mesmo a rota divindade com que as religiões lhe acenavam. Mas por isso mesmo que é humilde, liberta e tranquiliza, e, por outro lado, torna possível o progresso.
Mas o homem, liberto de concepções transcendentais, não deve ver nisto mais que um aspecto da realidade, e o aspecto que lhe permite fazer da vida um encadeamento de esperanças e de projetos, com tudo de fascinante que pode ter essa face problemática da existência. Se existem elementos essenciais para a felicidade humana, uma felicidade viva e ativa, uma felicidade de trabalho e de prazer – não a felicidade utópica ou nirvânica das teologias –, esses serão a serenidade e a esperança que a compreensão da vida, nesse moderno espírito científico, vem assegurar.
Fatos recentes na América, de leis votadas por congressos estaduais contra o ensino de evolução nas escolas e as campanhas de "americanismo" de Chicago e outros centros, insistindo para um ensino autoritário de ‘patriotismo’, são aspectos do velho espírito, ainda muito vigoroso para ser julgado fora de combate. Toda essa agitação que vai pelo campo das mais "sagradas" instituições, no velho critério autoritário de família, pátria, religião, capitalismo, etc., revela o novo espírito de reconstrução que vitoriosamente está marcando o nosso tempo.
Com as novas responsabilidades que assume o homem, a educação ganha uma função mais vasta e mais profundamente essencial. Já não lhe basta investir a criança nas fórmulas tradicionais da cultura do seu povo ou da sua raça. Impõe-se-lhe a obrigação de prepará-la para compreender e renová-las. A sua nova função é a de preparar personalidades livres e independentes, que pensem e ajam por si. Anteriormente, preparavam-se as crianças para a aceitação dos sistemas sociais, tradicionais ou religiosos. Preparavam-se "conservadores", "católicos", "protestantes", "espíritas" etc. Hoje a educação deve preparar uma inteligência para ser livre.
Referência:
TEIXEIRA, Anísio Spínola. Em marcha para a democracia: à margem dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.



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