ESTADO, CIDADANIA E EDUCAÇÃO PROFISSIONAL DE NÍVEL MÉDIO NO BRASIL
Por JORGE ESCHRIQUI
No mundo contemporâneo o Estado apresenta-se como um ente de todos e acima das classes em uma sociedade capitalista caracterizada pela presença de interesses antagônicos. Para que as relações entre capital e trabalho nesta sociedade não aparentem tão conflitantes, estas são colocadas como realizadas entre indivíduos isolados, livres e iguais em termos jurídicos de direitos e deveres. Isso impede que, no plano do direito, as desigualdades sociais se expressem como tais. Essas desigualdades são camufladas sob a concepção de cidadania. Diferentemente da compreensão deste termo na Antiguidade, sobretudo na Grécia Antiga, na qual ser cidadão significava estritamente a participação na administração da polis, com o desenvolvimento do capitalismo e o advento do Estado liberal, a cidadania diz respeito não apenas à participação política, mas também à aquisição da propriedade das coisas que venham a suprir as necessidades e ao exercício de direitos e obrigações para com a sociedade por parte de todos os indivíduos.
Na Antiguidade não havia nenhum princípio jurídico ou político sobre a igualdade dos cidadãos para contrastar com o princípio da desigualdade social. A concepção de cidadania na Grécia Antiga, por exemplo, não diminuía as desigualdades sociais. Pelo contrário, aumentava-as quando restringia a condição de cidadão somente àqueles que podiam participar da administração da polis, ou seja, aos nobres, e com isso, acentuava a distância entre os indivíduos. Tal fato explica porque para cada categoria de homens – nobres, artesãos, escravos, etc. – eram destinados tipos específicos de educação, trabalho e direitos.
Com o advento do capitalismo e do Estado liberal, a sociedade política constituída cria normas universais que permitiriam a vida societária. O ente estatal surge como autoridade civil a partir do qual emanam os direitos civis, políticos e sociais. O Estado moderno passa a ser concebido como uma condição sine qua non para a constituição da cidadania por meio da garantia dos direitos naturais (vida, liberdade e propriedade adquirida através do trabalho). A partir do momento em que juridicamente os indivíduos indistintamente são considerados possuidores dos direitos naturais – diferentemente do que ocorria na Antiguidade –, o Estado liberal busca amenizar o antagonismo entre capital e trabalho, dominante e dominado, capitalista e proletariado, uma vez que todas as pessoas em tese são submetidas às mesmas regras sociais. Ademais, o trabalho passou a se constituir em elemento central da concepção de cidadania do mundo capitalista. Ao contrário da perspectiva existente na Grécia Antiga, o trabalho passa a ser visto como um meio necessário para a conquista da cidadania.
Na sociedade capitalista o indivíduo recebe através do trabalho a parcela a que tem direito nas relações sociais (salário), tornando real a sua condição de cidadão. De acordo com os direitos civis que proporcionam à pessoa liberdade para negociar livremente, o trabalhador é o proprietário da sua força de trabalho, vendendo-a em troca de um salário. Desse modo, o proletário é dono da sua força de trabalho e o capitalista do capital, estabelecendo-se a ideia de que ambos necessitam um do outro e, por conseguinte, devem viver em harmonia no espaço social. Todavia, não é exatamente isso que se observa ao longo do processo histórico de acumulação do capital, caracterizando-se por um aprofundamento das desigualdades e aumento das tensões sociais.
Nesse cenário, a partir da Crise Econômica Mundial de 1929, surgiu a ideia de que o Estado deveria investir na promoção do bem-estar social para manter uma harmonia e evitar um maior antagonismo entre trabalho e capital na sociedade. Assim, o Estado de Bem-Estar Social forneceu as condições que propiciaram a conquista de direitos sociais até então negados à classe trabalhadora. Contudo, é importante observar que muitos desses direitos decorreram da necessidade de expansão e desenvolvimento do capitalismo industrial e da nova forma de organização social criada a partir dele, como é o caso do Brasil, sobretudo a partir dos 1930. Quando a economia brasileira deixou de ser predominantemente rural e passou a se desenvolver a urbanização e a industrialização, fazia-se necessária a inserção de novos hábitos importantes para o convívio social nas cidades e a eficiência do trabalho. Nesse sentido, saber ler, escrever, contar e adquirir hábitos de higiene tornaram-se necessidades básicas ao novo estilo de vida e ao modelo de produção. A ideia vinculada para a grande massa dos trabalhadores era a de que, para que pudessem melhor participar dos seus direitos de cidadania, deveriam ser escolarizados.
Com a Globalização e a ascensão do neoliberalismo nos anos 1990, o discurso sobre o papel do Estado mudaria drasticamente. A retórica seria a do Estado mínimo que introduziu uma política de enfraquecimento das conquistas sociais da classe trabalhadora. Substituem-se os investimentos para atendimento das demandas da população por gastos em propagandas maciças que enfatizam os benefícios de uma sociedade privatizada. Os conceitos mais presentes no discurso neoliberal e oficial passam a ser “mercado”, “escolha” e “direitos do consumidor”, que reduzem o cidadão apenas à condição de consumidor. A política resultante desse discurso termina por favorecer a alta concentração e uma desigual distribuição de renda, ocasionando uma cadeia de fatos que agravam a crise econômica como o desemprego em massa, a queda na renda e no consumo, desestímulo de investimentos na produção, diminuição da arrecadação de impostos e consequentemente do investimento estatal.
Nesse contexto surgem reflexões relativas à educação e ao exercício da cidadania: Pode a conquista da escolaridade garantir a cidadania em um país que não garante ao indivíduo o direito ao trabalho? Pode a qualificação profissional garantir emprego ao trabalhador, sendo este um dos parâmetros fundamentais para se tornar cidadão? Qual são as habilidades, as competências, os saberes e os conhecimentos que devem ser adquiridos no âmbito escolar para que o trabalhador possa desenvolver bem o seu trabalho? Diante da realidade social em que se encontra o Brasil, onde as carências econômicas e sociais da população impõem cada vez mais aos jovens a participação prematura na renda familiar, a formação e a capacitação por meio de uma educação profissional de nível médio de qualidade é uma alternativa que deve ser pensada seriamente e amplamente viabilizada. Nesse sentido, a educação profissional de nível médio deve ser pautada por programas curriculares que contenham princípios, objetivos e práticas didático-pedagógicas fundamentais para o desenvolvimento de habilidades, competências e conhecimentos essenciais que tenham como objetivo não somente a formação e capacitação do jovem para a sua inserção no mercado de trabalho, mas também o exercício crítico-reflexivo de uma profissão e a compreensão do seu papel de cidadão na sociedade. Isso demanda a contemplação pelos currículos da educação profissional de nível médio de aspectos como comunicação verbal e escrita, leitura e compreensão de textos, raciocínio lógico, saúde e segurança do trabalho, informática, orientação profissional, além dos elementos técnicos e práticos específicos de cada ofício. Ademais, no caso dos jovens em situação mais grave de vulnerabilidade social, é indispensável que o Estado desenvolva políticas educacionais relativas ao ensino técnico-profissionalizante que incluam a ampliação dos estágios remunerados já existentes no país por meio de uma parceria com empresas e órgãos públicos das esferas municipal, estadual e federal e a implantação de programas de concessão de bolsas para estudantes da educação profissionalizante, garantindo-se, assim, a sobrevivência e o comprometimento dos alunos mais carentes com a sua formação, capacitação e inserção no mercado de trabalho.
Referência:
FERREIRA, Marieta Teves. Cidadania: uma questão para a educação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
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