SEMPRE SEREMOS DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS E PAZ. JAMAIS DITADURA, VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E VIOLÊNCIA!

(Reflexão: O que pode representar o Oscar como Melhor Filme Internacional de "Ainda estou aqui"?)

Por MARGARIDA GENEVOIS* (Membro-fundadora da Rede Brasileira de Educação e Direitos Humanos e da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Recebeu o Prêmio USP de Direitos Humanos)
Muitas vezes me perguntei onde começa o mérito de nossas ações. Somos o resultado de tantos fatores: hereditários, genéticos, circunstanciais, do acaso ou sorte que nos coloca num dado momento em determinado lugar, dos encontros e pessoas que cruzam nosso caminho. Há momentos vividos que marcam profundamente nossas vidas. São intensos e plenos de significados, adquirem o aspecto de uma graça, e continuam reverberando em outros tempos de nossa vivência.
Um sentido profundo em minha vida é ver a responsabilidade que temos uns para com os outros e como às vezes podemos fazer muito, com tão pouco esforço. Como a rosa que cativou o Pequeno Príncipe, fiquei para sempre ligada, sensível aos "outros" que Deus foi colocando no meu caminho.
Um grande temporal se desencadeou em nosso país. O golpe militar de 1964 inaugurou uma longa e tormentosa noite, um regime de medo, terror e angústia. Para os jovens que não viveram aquela época talvez seja difícil o clima de insegurança em que vivíamos, de suspeita generalizada, de prisões, torturas e desaparecimentos.
Nesta ocasião D. Paulo Evaristo Arns abriu as portas da Igreja para acolher os aflitos. Estava entre os poucos bispos que naqueles primeiros anos tenebrosos ousava acolhê-los. Fui chamada por Dom Paulo a participar da recém-criada Comissão Justiça e Paz, ligada à Cúria Metropolitana. D. Paulo encarregou-me de receber as pessoas que o procuravam, perseguidas pela ditadura. De todo o Brasil, famílias desesperadas e pessoas aflitas acorriam à comissão em busca de apoio. Em nosso plantão diário quantos dramas presenciamos! Eram aterradores os depoimentos que ouvíamos. Muitas vezes as pessoas a nossa frente sentiam até pudor em relatar o que tinham passado, tão horríveis e bestiais foram suas experiências, terríveis pesadelos.
Pau-de-arara, cadeira do dragão, choques elétricos, afogamentos e outras torturas desumanas. Hoje, olhando para trás, estes fatos parecem longínquos, irreais, mas não devem ser esquecidos. Às famílias e aos presos nunca perguntava: Qual o seu partido? Qual a sua religião? Eram pessoas em sofrimento, que batiam à porta necessitando de ajuda. Eram dramas de vida e morte, havia urgência. Atendíamos com o pouco que era possível fazer: os advogados se desdobravam para obter a proteção judicial possível e ajudar na busca dos desaparecidos, escondíamos pessoas em perigo de vida, encaminhando-as para o exterior, fazíamos denúncias nos organismos internacionais. E sofríamos com as famílias a angústia da incerteza, o drama da separação, a batalha da incessante procura. Compartilhávamos suas esperanças e decepções.
Nessa longa noite, infelizmente, alguns desses meninos e meninas não sobreviveram... Lembro-me da família de Fernando Santa Cruz, de sua mulher, tão mocinha, com um filho pequeno nos braços, de sua irmã Rosalina Santa Cruz, também presa e torturada. Onde está o Fernando? Um dia saiu com seu amigo Eduardo Collier para comprar pão na padaria da esquina e nunca mais voltaram, sumiram no ar feito fumaça.
E nessas batalhas e campanhas fomos subindo degraus, alargando os horizontes, a ação se ampliando de várias formas, ampliando-se os pedidos por ajuda com a chegada dos fugitivos de perseguições cruéis das ditaduras do Chile, Argentina e Uruguai. Felizmente conseguimos o apoio da Acnur, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, pois não tínhamos condições, sozinhos, de atender os mais de mil refugiados que passaram pela Cúria.
Levantamos a bandeira de várias campanhas: contra a Lei de Segurança Nacional, contra a pena de morte, contra o esquadrão da morte, pela anistia, pela volta dos exilados e muitas outras. No Araguaia, na pequena vila de Xambioá, à procura dos corpos dos guerrilheiros, desenterramos ossadas que o legista identificou como sendo de uma moça de cerca de 20 anos. Um buraco nas têmporas mostrava que tinha sido morta com um tiro. Nunca me esquecerei da emoção desse momento – uma menina da idade de minhas filhas, poderia ter sido uma delas. Foram histórias de humilhação, abuso e morte, mas também histórias de dignidade e coragem, de solidariedade e partilha de convicções, esperanças, afetos, desilusões e compromissos.
O discurso de direitos humanos é aceito no Brasil hoje em teoria, mas quando são exigidos na prática passam a incomodar e provocam reação, medo de perder ou diminuir privilégios. Ainda não foram internalizados nas mentes e nas práticas. E continuam as violações, as chacinas, as injustiças. Ainda resta muito caminho. O caminho feito ao andar.
Vivemos uma época de contradições. De um lado um progresso técnico vertiginoso, os meios de comunicação que aproximam os homens, tornando o mundo pequeno. De outro, no contexto de um liberal capitalismo exacerbado, a valorização do ter sempre mais, a competição e o egoísmo que afastam os homens uns dos outros.
Os seres humanos devem educar-se em comunhão, todos temos algo a dar e algo a receber. "No ensino e aprendizagem dos direitos humanos todos somos especialistas do humano, ou indigentes", já dizia Perez Aguirre, educador uruguaio. Não bastam leis e princípios, é preciso que as pessoas tenham noção de seus direitos, lutem por eles e também pelos que não têm direitos. Os direitos humanos não são teorias, vive-se a cada minuto do dia, no respeito ao diferente, na consciência dos direitos dos outros, na tolerância.
Trata-se de disseminar, pelos meios possíveis, disse D. Paulo, o respeito a cada pessoa que encontramos na vida ou que nos é confiada pela existência. E preparar as pessoas para se tornarem cidadãos do mundo, responsáveis pela democracia verdadeira e efetiva e pela Justiça, sem as quais não é possível alcançarmos a paz.
Ganhei muito mais do que pude dar, com os meninos Jesus que encontrei pela vida, com as pessoas que tive a sorte de conhecer e conviver – sem elas não seria nada. Tive vários companheiros de jornada. Alguns tombaram no caminho, mas sempre acreditaram, como nós, que um Brasil mais justo e equitativo é possível.
* Discurso proferido por Margarida Genevois na entrega do Prêmio USP de Direitos Humanos 2002.



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