A EXCLUSÃO SOCIAL E O SOFRIMENTO HUMANO COMO UM RISCO À ORDEM NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Por NILDA TEVES FERREIRA (Laboratório do Imaginário Social e Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro)

O discurso da necessidade de modernização esconde que ela implica novos processos de inclusão e exclusão que afetam contingentes cada vez maiores, tanto na esfera da produção como na do consumo. Isso tudo tende a um limite, a partir do qual o Estado, ou seja, a instância política da sociedade, é obrigado a intervir, procurando formas de estabilização. A crise de governabilidade, nesse caso, não diz respeito apenas à forma pela qual o governante chegou ao poder, mas pelo que ele fez – e não faz – para continuar no poder. A integração de segmentos sociais no processo produtivo passa a ser questão de segurança nacional. Integrar esses segmentos significa corrigir patologias sociais que o próprio sistema criou.
Observa-se a formação de um contingente de excluídos do trabalho, os desempregados, que, se não se realocarem em outros setores produtivos, passarão com toda a família para a esfera dos malditos, os marginais sociais, a classe perigosa que a todos assusta. Eles existem em quase todos os grandes centros urbanos, onde o capitalismo atua em sua feição mais perversa. Quem são? Por que se deixam ficar à margem? Que problemas os afligem mais? São questões que devem preocupar a todos os governos, especialmente os do Terceiro Mundo, onde esse contingente é cada vez maior. Essas pessoas usam diversos mecanismos para suportar as condições de miséria em que vivem, criando formas próprias de subsistir com recursos extraoficiais. Apelam para a religião como meio de resolver problemas de saúde, emprego e proteção; utilizam formas nem sempre legais para obter os recursos mínimos necessários à subsistência.
Parece claro que, quanto mais se deteriora a capacidade de ação do Estado, quanto mais concentracionista é o sistema, maior é o número dos que pagam com a vida o sucesso do capitalismo. Uma sociedade de classes antagônicas favorece o surgimento de grupos de pessoas organizadas dentro de determinados padrões de favorecimentos sociais: os cidadãos e os não cidadãos, ou marginais sociais.
Já não basta apelar para a compreensão das massas. O sofrimento tem seus limites e pode chegar o momento em que prevaleça a lei do mais forte – neste caso, a multidão enfurecida. Os “arrastões” realizados pelos excluídos do Rio de Janeiro são um exemplo do que estamos falando. O grande terror do nosso tempo não é a fogueira da Inquisição, nem o perigo comunista, mas a rebelião das massas famintas e miseráveis, incontroláveis e devastadoras. Contê-las não é ato de bondade. É uma estratégia política de sobrevivência do próprio sistema.
A cidadania social, como uma conquista da classe trabalhadora que se recusa a ser excluída dos benefícios sociais, é fundamental para a coesão social. Ela revela as novas funções do Estado, negando a sua suposta isenção em relação à esfera privada da sociedade. De múltiplas maneiras o Estado é chamado a corrigir externalidades, resolver problemas de transporte coletivo, moradia, saúde, educação e alimentação. Nada mais escapa à sua intervenção. Por outro lado, fica cada vez mais difícil sustentar a expansão do capitalismo sem ter que mudar substancialmente os seus mecanismos de distribuição. O processo de inclusão/exclusão de grandes contingentes de pessoas aponta para o fato de que existem aqueles que jamais serão incorporados ao sistema de benefícios institucionais. Para suportar essa negação, não adianta o sistema apelar para a compreensão, lealdade, boa vontade e educação. Instala-se assim uma ordem na des-ordem. Tenta-se todo tempo dizer que isso é natural, que é a única forma possível de organização da sociedade e do Estado.
Em determinados momentos o bem comum tem a conotação da ordem que o Estado pode oferecer, mantendo os excluídos no devido lugar, limpando a cidade dos desviantes. A “felicidade geral” e o “bem de todos” são expressões que silenciam essas pessoas. Um discurso ilusionista faz desaparecer dos textos oficiais aqueles que são cada vez mais numerosos e mais presentes, os marginais. Esses excluídos criam formas próprias de sobreviver fora do sistema, seja no mercado informal do trabalho, seja junto ao crime organizado. Formam-se “estados” dentro do Estado, territórios próprios, com leis, regras de convivência e sistemas de segurança. Como conviver com isso pacificamente? Como esperar que os benefícios sociais sejam estendidos a essa população?
Principalmente no chamado Terceiro Mundo, o processo de concentração de renda, típico da sociedade capitalista, acaba excluindo uma grande parte da população. Contraria assim o ideal de universalização da cidadania social e rompe com a bandeira histórica de legitimação do capitalismo: igualdade, liberdade e fraternidade.
Referência:
FERREIRA, Nilda Teves. Cidadania: uma questão para a educação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.



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