AS CONTRIBUIÇÕES DE MICHEL FOUCAULT PARA AS DISCUSSÕES SOBRE OS PROBLEMAS DISCIPLINARES E O PROJETO DE IMPLANTAÇÃO DE ESCOLAS CÍVICO-MILITARES NO BRASIL
Por JORGE ESCHRIQUI
Michel Foucault não abordou especificamente a educação em sua produção intelectual. Na realidade, ele apenas tratou da escola enquanto uma instituição moderna importante para a compreensão do processo histórico-social de vigilância e adestramento do corpo e da mente dos indivíduos em diferentes sociedades. Nesse contexto, a escola é uma das várias instituições sociais (como o exército, as fábricas, as prisões, os asilos, etc.) responsáveis por moldar os sujeitos, tendo como parâmetro uma concepção de cidadão ideal que exerça as suas tarefas coletivas e individuais de acordo com as normas estabelecidas pelo Poder.
O mecanismo utilizado pelas instituições sociais para moldar os indivíduos a padrões de comportamentos considerados ideais pelo Poder é a disciplina, que tem como finalidades "domesticar" e "adestrar" os sujeitos para as normas de convivência coletiva por meio de discursos de "verdade", vigiar atitudes e punir possíveis desvios de condutas. A intenção desse modelo disciplinar é formar pessoas submissas e disciplinadas que não fujam das normais impostas pelo Estado e pela sociedade. Em suma, trata-se de um processo que "visa não unicamente o aumento das habilidades dos indivíduos, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna mais obediente quanto é mais útil, e inversamente." (FOUCAULT, 1999, p. 119).
Para fazer do tempo e dos corpos dos homens algo que se tornasse uma força produtiva (não é por acaso que atualmente um dos princípios que regem as finalidades da educação nacional nos diversos documentos oficiais é o preparo dos alunos para o mercado de trabalho), foi necessário um conjunto de mecanismos de sequestro sistemático e contínuo dos indivíduos em instituições que, em conjunto, formam um tipo de "teia", nas quais o sujeito encontra-se aprisionado. Tais instituições têm presença justificada historicamente nas sociedades pela necessidade que possui o Poder de formar, reformar e corrigir comportamentos para a aquisição de habilidades e competências capazes de produzirem um corpo útil. Dessa maneira, para Michel Foucault, a disciplina estabelecida e as "verdades" difundidas em diversas instituições sociais são mecanismos de poder que "permitem extrair dos corpos tempo e trabalho, mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce continuamente por vigilância e não de forma descontínua por sistemas de tributos e de obrigações crônicas". (FOUCAULT, 1999, p. 42).
A disciplina, que ocorre em instituições como o exército, as fábricas, as prisões, os asilos, as escolas, etc., dá-se por meio das distribuições dos indivíduos no espaço e, para isso, utiliza-se várias técnicas (local fechado, muros elevados, grades, enfim, lugares com um espaço limitado). Não é por acaso que a disciplina nas escolas foi pensada historicamente a partir de uma distribuição dos indivíduos no espaço, utilizando técnicas para obter um sujeito cada vez mais submisso. Desse modo, a escola torna-se não somente um espaço de aprendizado, mas também de hierarquizações e vigilância constante para o controle dos comportamentos dos estudantes.
A partir da perspectiva foucaultiana, pode-se entender que a escola foi historicamente planejada pelo Poder enquanto um aparelho para a modelação dos corpos e das mentes de alunos por meio de técnicas como a distribuição em fileiras dos estudantes nas salas de aula, a divisão dos discentes em séries e salas separadas, os horários, as atribuições de tarefas com certa duração e ordem, boletins, relatórios, avaliações da aprendizagem, etc. Tais técnicas terminam manipulando e condicionando o corpo e a mente dos alunos e estabelecendo parâmetros de comportamento e nível de aprendizado e, por conseguinte, permitindo certos tipos de rotulações ("o problemático", "o indisciplinado", "o destaque", etc.). Tudo o que foge da norma implica em correção e punição. Segundo Foucault, "é um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que em todos os dispositivos de disciplina o exame é altamente ritualizado. Nele veem-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível". (FOUCAULT, 1977, p. 164-165).
Um dos grandes desafios da sociedade contemporânea (em especial, a brasileira) é a crise desse modelo disciplinar na escola. Afinal, a ideia do modelo de cidadão ideal (apto a obedecer plenamente as normas de convivência escolar, temer as punições de gestores e educadores e moldar o corpo e a mente para ser "útil" à sociedade) como foi planejado e era formado nas instituições de ensino no passado parece uma realidade bem distante do que se observa presencialmente nas escolas ou se assiste ou lê nos diversos meios de comunicação. Por outro lado, o mecanismo disciplinar no ambiente militar parece imune às transformações de valores e comportamentais pelas quais passam o restante da sociedade. Talvez aí esteja a expectativa de manter a tradição do poder disciplinar e a ordem no ambiente escolar por meio da criação das escolas cívico-militares. Isso explica o discurso oficial e de setores sociais que defendem esse modelo de gestão compartilhada das escolas baseado na ideia de que, enquanto os docentes e os gestores escolares ficarão responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem, caberá ao militares a manutenção da ordem e disciplina nas instituições de ensino. Em suma, é uma tentativa do Estado e de alguns atores da área educacional de manter a função social tradicional da escola de vigiar, punir e moldar os futuros cidadãos para que sejam úteis dentro de um modelo ideal de ordem pensado para a sociedade ao longo de séculos de história da humanidade, se pensarmos esse tema a partir de uma análise foucaultiana. Contudo, uma reflexão necessita ser feita sobre o tema das escolas cívico-militares. As instituições polícia militar e bombeiros são compostas por indivíduos adultos com o processo de desenvolvimento cognitivo e a personalidade já consolidados e, portanto, em teoria, mais fáceis de serem moldados os seus corpos e mentes a determinados discursos de "verdade" e modelo de ordem, disciplina e hierarquia. Como ter certeza do sucesso pleno do modelo de gestão compartilhada em todas as escolas públicas se nelas nos deparamos cotidianamente com alunos que ainda estão em pleno processo de desenvolvimento e formação de seus aspectos sociais, cognitivos, ético-morais, culturais, etc., sendo oriundos de diferentes classes e espaços sociais e que não estão imunes a outros locais e agentes de socialização que contribuem também para a sua formação enquanto indivíduo e ator social numa sociedade em permanente processo de mudanças de valores, atitudes, hábitos, etc.?
O grande desafio do sistema educacional brasileiro e de todos os atores diretamente envolvidos nele é pensar sobre a adequação de um número elevado de alunos, provenientes de diversos contextos, a normas coletivas de convivência coletiva, garantindo-se o respeito mútuo e as condições propícias em sala de aula e outros espaços físicos das escolas para um ensino de qualidade.
Referências:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.
_________. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.