O QUE REVELA A VIOLÊNCIA NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR?

Por MARÍLIA PONTES SPOSITO (Professora Titular da Faculdade de Educação da USP da área de Sociologia da Educação e membro da diretoria da ONG Ação Educativa)
Em que medida a violência escolar, utilizando-me de uma expressão de Henri Lefebvre, não seria o elemento revelador de situações, a porta de acesso privilegiada para uma análise mais densa do próprio sentido da escola no mundo contemporâneo? Qual é o lugar ocupado pela instituição escolar no processo de socialização de crianças, adolescentes e jovens? A escola foi pensada, sobretudo a escola pública, como espaço de socialização de novas gerações, operando na formação e construção de humanidades capazes de viverem ativamente a vida social. Na França o modelo de integração, tendo em vista a construção do Estado-nação, ancorou fortemente as representações e práticas da escola pública republicana, particularmente no ensino elementar.
No Brasil, grande parte do significado simbólico atribuído à escolarização, sobretudo aquele que nasce nas representações de populações não privilegiadas do ponto de vista econômico e cultural, esteve ligado às possibilidades – efetivas ou apenas imaginadas – de mobilidade social. O amplo movimento de expansão do ensino, observado a partir dos anos 1930, teve suas origens na pressão empreendida pela população para obter melhores oportunidades de acesso ao sistema escolar público. Os movimentos de base popular por educação não foram apenas expressão generalizada de anseios de segmentos excluídos da cidadania em sociedades de extrema desigualdade, mas indicaram, também, que os poucos e às vezes provisórios direitos existentes são produtos de difíceis e anônimas conquistas.
As atuais possibilidades de ascensão social oferecidas pelo sistema de ensino público são evidentemente mais reduzidas. Estudos recentes evidenciam que o aumento dos níveis de escolaridade da população não significa, de imediato, melhores condições de absorção pelo mercado de trabalho, que possui mecanismos próprios de produção da desigualdade e da exclusão.
Há um profundo reconhecimento de que as trajetórias escolares são condições necessárias de inserção e de sobrevivência no mercado de trabalho, mas não constituem condições suficientes para ancorar todo o conjunto de expectativas anteriormente atribuídas ao projeto escolar, aspirações ainda consolidadas nas representações das famílias. Por essas razões, grande parte dos estudos aponta a ambiguidade das relações estabelecidas entre os alunos e a escola, caracterizadas não só pelos processos de exclusão, mas pela intermitência, matrículas sucessivas, abandonos, interrupções. Jovens e adolescentes, na maioria das vezes atores da violência escolar, não reconhecem outras alternativas atribuídas à importância da escola em suas vidas, além da corroída crença na ascensão, representação herdada das gerações futuras.
A inexistência de referências capazes de estruturar novos sentidos para a busca da educação sistemática se inscreve em situações paradoxais. A ausência de significados positivos para a vida escolar caminha ao lado de novas exigências de domínio de linguagens, informações, conhecimento, enfim, de todo o campo da atividade simbólica contemporânea que pressupõe o domínio de habilidades a serem adquiridas principalmente na escola. A satisfação de necessidades, já reconhecidas socialmente, que permitam a formação de sujeitos autônomos para a vida pública e privada exige, em parte, a apropriação dos benefícios advindos da educação escolar. No entanto, essa importância, sob o ângulo dos atores concretos aos quais se destinam os esforços dos educadores, não articula práticas, não tem provocado adesões fortes à instituição escolar. Esta, por sua vez, tem apresentado dificuldades para alterar procedimentos consagrados de exclusão e para empreender novos caminhos.
As pesquisas revelam que a maior parte dos vínculos construídos no espaço da escola decorre das formas de sociabilidade entre os pares e de algumas relações mais significativas com alguns professores. Tais interações acontecem na escola, mas não são produto deliberado das orientações de professores e administradores. Ao que tudo indica, em escolas com índices reduzidos de violência, ainda existiriam esses espaços extremamente valorizados pelos alunos, particularmente quando um conjunto de condições sociais adversas dificulta o desenvolvimento dessa sociabilidade em outros momentos de sua vida. A violência seria apenas a conduta mais visível de recusa ao conjunto de valores transmitidos pelo mundo adulto, representados simbólica e materialmente na instituição escolar, que não mais respondem ao seu universo de necessidades. Outras modalidades de resposta, talvez as mais frequentes, se exprimem no retraimento e na indiferença: os alunos estão na escola, mas pouco permeáveis à sua ação – compreender as práticas de agressão e superá-las demandam esforços de entendimento sobre os caminhos que permitirão a ação socializadora da escola, ampliando com novas atribuições as consolidadas representações do mundo adulto em torno da ascensão social.
Assim, o esgotamento do modelo de escolaridade voltado para a mobilidade social convive com o enfraquecimento da capacidade socializadora da escola como instituição formadora de novas gerações. Por estas razões, um dos principais desafios é o exame de alternativas que possibilitem à escola a redefinição de sua presença no universo de crianças, adolescentes e jovens, de modo a alcançar algum significado efetivo no desenvolvimento desses sujeitos. Os temas centrais contidos na ideia de democracia como espaço público, direitos, tolerância e respeito às diferenças podem conter as precondições para a busca de novas atribuições de sentido para a instituição escolar. Trata-se de propiciar a possibilidade de outra convivência e de novos significados para um presente democrático no interior da vida escolar capaz de sinalizar algum valor positivo para crianças, adolescentes e jovens. Práticas pedagógicas que acenem apenas com incertas possibilidades de melhoria para o futuro não são suficientes para construir relações significativas com a escola. Na falta de outras referências, a indiferença e a violência serão respostas frequentes e banalizadas, expressões parciais da crise que atinge os sistemas escolares.
Referência:
SPOSITO, Marília Pontes. A instituição escolar e a violência. In: CARVALHO, José Sérgio (Org.). Educação, cidadania e direitos humanos. Petrópolis: Vozes, 2004, pp. 161-189.



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