A DISTINÇÃO ENTRE AUTORIDADE E AUTORITARISMO E O APRENDIZADO DA DEMOCRACIA NA SALA DE AULA

Por REGIS DE MORAIS
Um tempo que confunde coisas tão radicalmente distintas como autoridade e autoritarismo é um tempo enfermo. Mas a enfermidade – seja-me permitido reafirmar o óbvio – nem sempre é algo fatal e irreversível; no mais das vezes, ela é um desencontro de energias que ameaça a desorganizar a saúde, levando a pontos críticos. Se aceitarmos o mais primitivo princípio da cibernética, segundo o qual "no universo tudo tende para o caos", deparamo-nos aí com o conceito de entropia – constante ameaça da ordem. E, no que concerne à saúde, precisaremos diferenciar a entropia absoluta, caminho direto para a morte, da entropia relativa, caminho direto para o tratamento. Rara, porém, a ameaça real à saúde que não conduza a momentos críticos. Ora, sendo fiéis à língua grega, precisaremos entender o momento de Krisis como sendo aquele que antecede à decisão medical; exatamente a hora em que se impõe a pergunta: "Então, qual é o remédio?"
Quero propor uma rediscussão do problema autoridade na sala de aula. Segundo o meu modo de perceber e avaliar as chamadas "relações pedagógicas", não consigo conceber tema mais contemporâneo e de vanguarda como a questão que acabo de propor. Está na hora de perdermos o medo perante certos problemas, superando inócuos trejeitos falsamente pedagógicos e modismos, saindo à procura de um equilíbrio até hoje raramente alcançado.
Basta pôr abaixo a riqueza dialética do existir humano para que o terreno fique preparado para as mais estranhas semeaduras. Hoje se contesta o magistério, vemos contestadas as lideranças pedagógicas, tudo isso em nome de ressentimentos equivocados. Os professores como que passam a ter vergonha de exercer uma autoridade para a qual estão designados, autoridade que nada tem a ver com traços autoritários desta ou daquela autoridade, mas que emerge do próprio processo educacional e de ensino.
Para aceder a uma liberdade de pleno exercício, o homem livre deve matar Deus, matar seu pai, livrar-se dos professores, chefes e de todos os patrões que mutilam sua autenticidade; o sonho seria fazer tabula rasa, absolutamente, em flutuar no espaço, fora de toda ação de gravidade, de toda alienação, de toda usurpação de qualquer natureza ou de quem quer que seja. É assim que se representavam os anjos do céu nas imagens mitológicas de outrora.
Darei um rápido traçado de dois quadros, dois momentos muito impressivos desse estranho espaço (a classe), recorrendo às minhas recordações – temas constantes do meu pensamento educacional.
Primeiro: rememoro um tempo em que meu irmão mais velho ia para a escola (o antigo ginásio), trajado militarmente, com roupa cáqui, cinturão largo, gravata e quepe – pobre e fantasiada figura. Sei que, em sua sala de aula, pontificava um semideus (o professor), dardejando ordens sobre silenciosas cabeças adolescentes. Presença esmagadora, e, muitas vezes, amordaçante, situava-se o professor como o ponto de convergência de todos os acontecimentos, como protagonista maior do ensino – misto de instrutor, moralista, adestrador de comportamentos. A esquadra de fardados que lhe ficava adiante, ia recebendo – no mais estupefato silêncio – as lavas de erupções docentes, alguns para viverem para o resto de suas vidas de cerviz dobrada pela vontade própria, outros desenvolvendo no íntimo com a sua forte revolta, a mais sofisticada arte de mentira e da hipocrisia – nem que isso lhe servisse de recurso temporário. Uma coisa, porém, era certa: ninguém se atreveria a, face a face, contestar o que fosse tanto as atitudes quanto os discursos do professor.
Este o primeiro quadro (a jaula de aula) cuja lembrança me aterroriza. Mas agora, procuro esquecer aqueles tempos de ditadura no Brasil e levo meu pensamento para uns 30 anos depois, quando eu, antes uma criança espantada, vi-me trabalhando no ensino de 2º grau (atualmente, ensino médio). E vem-me o segundo quadro (o picadeiro de aula): rememoro classes inteiramente desorientadas, professores de olhos espantados que tinham ordem do Governo do Estado de São Paulo para aprovar 80% dos seus alunos, a despeito de qualquer merecimento; os mestres sentindo que, sob anomia, nenhuma sala de aula funciona e, ao mesmo tempo, tendo que enfrentar os pedagogos de uma "vanguarda de última hora" com todo o seu menosprezo por qualquer tipo de disciplina de "trabalho". Tudo se parecia com uma caricatura: o antigo leão docente mostrava-se desdentado e ocupava uma situação periférica, melancólica, pois uma nova escola, que há muitos anos ganhara justamente o apelido de Escola Nova, ensinara umas coisas intrigantes do tipo: "ninguém ensina ninguém, o aluno é que aprende vivenciando experiências"; ou "o importante não é a disciplina, mas a criatividade do aluno" (outro petardo na rica dialética do existir humano).
Hoje está posto um desafio que precisa começar a ser enfrentado no exato espaço da sala de aula. O de se recuperar o sentido da autoridade nas relações pedagógicas, sem qualquer concessão a autoritarismo, que desde já estamos fartos. Gosto das pedagogias dialéticas, quando estas nos põem perante o fato inegável de que o contexto político condiciona a escola, mas fico insaciado quando as vejo querendo resolver tudo exclusivamente pelo lado político, eximindo-se de tarefas adstritas ao que há de mais interno (e humilde) no processo de ensino.
Sabe-se que o autoritarismo é a doença da autoridade. Toda autoridade é um valor, pois é a garantia da liberdade. Mas qualquer valor, por mais puro que seja, quando se hipertrofia, faz-se um antivalor. Eis porque fica muito necessário, ao pensarmos especificamente na realidade da sala de aula, estabelecer certa divisão de águas, entre os mencionados antípodas. A autoridade é constituída e precisa ser aceita; ela não faz os educandos inferiores, imprimindo, ao contrário, às suas vidas um sentido mais seguro de caminhada e de conquista. Cabe ao professor, no uso de uma autoridade que é inerente à sua função, auxiliar o educando a ir reconhecendo que a vida é diferenciada: tanto em coisas intransformáveis, quanto em coisas que podem e devem ser modificadas.
Em nenhum momento, o professor pode duas coisas: (a) usar certo lado de poder do magistério para coagir, para adestrar, para desrespeitar o terreno interior de seu aluno; (b) ao mesmo tempo, e é preciso muita perspicácia para encontrar o ponto de equilíbrio, o educador digno de tal tarefa não pode se esconder em pernósticas teorias para eximir-se de sua autoridade orientadora e amiga em sala. Autoridade nunca tem fascínio por uniformizações, por produções em série de cidadãos medíocres. A educação deve permitir a cada indivíduo encontrar seu estilo; ser ele mesmo, para além da espontaneidade incoerente, para além das normas prontas e acabadas e dos lugares comuns; ser ele mesmo, assimilando o que cada cultura ofereça de verdadeiramente humano. Na mesma medida em que a autoridade é homeostase, é equilíbrio e garantia, autoritarismo é entropia nas relações humanas – especialmente nas pedagógicas. Na verdade, o autoritarismo é o tapume atrás do qual alguma incompetência se esconde. Ele usa a diferenciação natural do mundo para hipertrofiá-la, não reconhecendo as coisas transformáveis, mas, sim, parasitando-as, e, fazendo-o, deformar o educando.
Todos os períodos de decadência contestaram a autoridade. Discutiram contra ela e, por esta razão, acabaram nas cadeias do autoritarismo. Todas essas épocas disseram da autoridade, menosprezando-a, que ela não passava de um rito. Pois lhes digo: retirem a qualquer sociedade os seus ritos, e esta se fará em pedaços ou... inventará novos. Ora, a autoridade do professor nada tem a ver com policialismo; tem, sim, a ver com a conquista de uma disciplina de vida que não se aprende em manuais, mas na própria escalada dos obstáculos naturais. Compete, àquele que lidera seus educandos, auxiliá-los a não fazer uma imagem fantasiosa da vida cotidiana, como se fosse apenas um grande brinquedo.
Referência:
MORAIS, Regis de. Entre a jaula de aula e o picadeiro de aula. In: ______ (Org.). Sala de aula: que espaço é esse? São Paulo: Papirus, 1993, pp. 17-29.



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