POR UMA CIÊNCIA MAIS HUMANÍSTICA, HUMANIZANTE E HUMANA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Por ANÍSIO SPÍNOLA TEIXEIRA (Caetité-Bahia, 12 de julho de 1900 - Rio de Janeiro, 11 de março de 1971. Jurista, intelectual, educador e escritor brasileiro)
Historicamente, todos sabemos que o saber científico, como o concebemos hoje, elaborou-se por saltos e não sem luta e esforço, para vencer resistências obstinadas. Para que o método experimental se aplicasse ao mundo físico, primeiro, e, depois, ao mundo fisiológico, houve perseguição e martírio... E porventura já estará superada a era dos perseguidos e dos mártires do progresso humano?!...
Tais conhecimentos eram considerados perigosos, porque ameaçavam interesses criados e abalavam os fundamentos de uma ordem social inspirada em um saber unificado e pretensamente comum a toda a civilização vigente.
Conquistado o progresso científico moderno, as velhas ideias não se consideraram derrotadas, mas apenas se retiraram para trincheiras mais profundas. O conhecimento do mundo físico, do conhecimento do mundo biológico deixaram como que intactas ainda as regiões do social, do político, do moral e do religioso. Nessas áreas, onde se decidem afinal, por tradição, os interesses considerados máximos da vida humana, nem sequer teve entrada a ciência, efetivamente. É este o mundo dos “valores”, que continuam a ser governados por um outro tipo de saber ao tácito influxo da tradição, ou pela pura e simples pressão de grupos e classes. Os velhos dualismos irredutíveis aí se refugiam, mantendo a separação entre meios e fins, entre o mecânico e baixo e o moral e o alto, o supérfluo e espiritual e o prático e útil.
Devido a tais dualismos é que a nossa civilização, sob o impacto cada vez mais imperioso da ciência, faz-se material e inumana, com negação ou exclusão de outros valores, digamos, morais, que não são pela ciência dela apartados, mas sim pelos que da ciência usam e abusam, pondo-a ao serviço não da humanidade, mas dos seus próprios fins e interesses.
Concebida a ciência como uma fabricante de meios, sem jamais poder alçar-se aos fins, pôde ela ser utilizada para construir ou destruir a vida, sem que em nada isto a afete. Ora, a crise de nossa época é exatamente esta.
A ciência que já conquistou, praticamente, o mundo físico, que está a progredir a olhos vistos no mundo biológico, aumentando com suas vitórias a praticabilidade dos propósitos e objetivos mais humanos, tem de agora estender os seus métodos e processos de conhecimento ao mundo dos propósitos e dos fins verdadeiramente humanos. O tratamento diverso desses graves problemas humanos, pretendendo subtraí-los aos métodos da ciência, é que vem permitindo que a vida humana se torne o joguete dos interesses desencontrados e em conflito da nossa época em desenvolvimento, ao sabor de doutrinas absolutistas que, grosso modo, na extrema-esquerda ou na extrema-direita, erguem princípios dogmáticos anteriores e superiores à ciência, para entravar-lhe, justamente, a ação renovadora, construtiva. O problema de humanismo e ciência tem, assim e por tudo isso, importância fundamental.
O avanço do conhecimento científico e os seus frutos, as tecnologias, de base científica, transformaram a vida humana em todos os seus aspectos econômicos, sociais, morais e políticos. Mas, não prevalecendo em nenhum desses campos o método científico de estudo, observação e controle, e sim os métodos tradicionais e pré-científicos de direção e governo, os resultados dos progressos da ciência não puderam ser orientados, vindo a provocar desordens, deslocamentos e confusões. A aplicação da ciência – esta totalmente indiferente aos resultados das aplicações – gerou desintegrações e fragmentações as mais lamentáveis, muitas vezes, para a vida humana em conjunto considerada, infundindo-lhe desequilíbrios e artificiais desigualdades, muito acima de tudo quanto se reconhecia como desigualdades humanas naturais.
Nunca seria possível na Grécia considerar-se que à ciência fosse indiferente usar a energia atômica na destruição da humanidade, ou no progresso do seu bem-estar. Ora, isto, exatamente, passou a ser possível em face da separação entre a ciência e a filosofia, recurso histórico de que se valeu a ciência para que a deixassem progredir.
A inumanidade da ciência é algo de artificial, por certo, adotado como expediente de trégua, na luta do espírito humano contra a tradição, e que importa, agora, abolir, por isto mesmo que a ciência, embora julgasse inocente, talvez, o seu recurso de guerra fria, veio a se tornar, em virtude mesmo de sua consequente irresponsabilidade, perigosa e destrutiva.
Como surpreendemo-nos de que o homem, hoje, em meio aos prodígios de sua época, se sinta mais do que nunca alheio ao seu tempo e, o que é muito pior, alheio ao seu semelhante? Não há meio que seja um fim, nem fim que não se desdobre em meios. Dizer-se que a ciência nos dá os meios, mas não nos dá os fins, é algo que se custa a conceber, sendo, devendo ser a ciência um produto do homem e para o homem. A não ser que a ciência fosse cultivada por seres extra-humanos, indiferentes aos interesses e fins humanos, ninguém poderia imaginar que o homem estudasse o câncer... para melhor difundi-lo. Os cientistas passaram a seres extra ou inumanos e quando alguns, como Einstein ou Oppenheimer, lembram-se de que são humanos, corre pelo mundo uma surpresa... Pois não é que esses operários da ciência estão a querer dirigir a vida?
Os cientistas, transformados em elaboradores apenas de meios, para fins que lhes são alheios, tomam o lugar de artesãos – técnicos, nos dias de hoje – e, como tais, ficam subordinados aos elaboradores dos fins, que são a tradição e os que a interpretam e praticam, isto é, os legisladores e políticos, nem filósofos nem cientistas, mas, oportunistas e empíricos, bem pouco autônomos, aliás, porque nada dirigem, mas se deixam ir à deriva, sacudidos, aqui e ali, pelos empurrões e pressões das lutas e conflitos de grupos contra grupos, quer a eles se filiem, quer pretendam ser a eles estranhos ou não subordinados.
No sentido lato, ciência é antes um método de se obter conhecimento razoavelmente seguro do que um corpo definitivo, imutável, de conhecimentos. A aplicação universal do método científico e o abandono do fatal dualismo entre meios e fins, fazendo com que se faça e se estude ciência conjuntamente com (não tenhamos medo ao termo) filosofia, no sentido grego de sabedoria, isto é, a ciência do uso humano da ciência, não nos darão a felicidade imediata, mas nos encaminharão para a senda de um progresso integrado, harmônico, e então sim, humanístico, humanizante e humano.
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