AS POLÍTICAS AFIRMATIVAS E AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
(Para um estudo reflexivo sobre a inclusão de afrodescendentes nas escolas e universidades públicas do Brasil)
Por DOCUMENTO DAS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA
(1) O QUE SÃO POLÍTICAS AFIRMATIVAS?
No caso específico da população afrodescendente, tais políticas têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos. Tais políticas têm, também, como meta o direito dos negros, assim como de todos cidadãos brasileiros, cursarem cada um dos níveis de ensino, em escolas devidamente instaladas e equipadas, orientados por professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos; com formação para lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos étnico-raciais, ou seja, entre descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos, e povos indígenas. Estas condições materiais das escolas e de formação de professores são indispensáveis para uma educação de qualidade, para todos, assim como o é o reconhecimento e valorização da história, cultura e identidade dos descendentes de africanos.
(2) QUAIS SÃO OS OBJETIVOS DOS PROGRAMAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS?
Os programas de ações afirmativas são conjuntos de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória.
(3) O QUE É E QUAL A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS DE RECONHECIMENTO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA EDUCAÇÃO?
Reconhecimento implica justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que compõem a população brasileira. E isto requer mudança nos discursos, raciocínios, lógicas, gestos, posturas, modo de tratar as pessoas negras. Requer também que se conheça a sua história e cultura apresentadas, explicadas, buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira; mito este que difunde a crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros.
Reconhecimento requer a adoção de políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar a desigualdade étnico-racial presente na educação escolar brasileira, nos diferentes níveis de ensino.
Reconhecer exige que se questionem relações étnico-raciais baseadas em preconceitos que desqualificam os negros e salientam estereótipos depreciativos, palavras e atitudes que, velada ou explicitamente violentas, expressam sentimentos de superioridade em relação aos negros, próprios de uma sociedade hierárquica e desigual. Significa buscar, compreender seus valores e lutas, ser sensível ao sofrimento causado por tantas formas de desqualificação: apelidos depreciativos, brincadeiras, piadas de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando seus traços físicos, a textura de seus cabelos, fazendo pouco das religiões de raiz africana. Implica criar condições para que os estudantes negros não sejam rejeitados em virtude da cor da sua pele, menosprezados em virtude de seus antepassados terem sido explorados como escravos, não sejam desencorajados de prosseguir estudos, de estudar questões que dizem respeito à comunidade negra. Reconhecer exige que os estabelecimentos de ensino, frequentados em sua maioria por população negra, contem com instalações e equipamentos sólidos, atualizados, com professores competentes no domínio dos conteúdos de ensino, comprometidos com a educação de negros e brancos, no sentido de que venham a relacionar-se com respeito, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes e palavras que impliquem desrespeito e discriminação. Assim sendo, sistemas de ensino e estabelecimentos de diferentes níveis converterão as demandas dos afro-brasileiros em políticas públicas de Estado ou institucionais, ao tomarem decisões e iniciativas com vistas a reparações, reconhecimento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à constituição de programas de ações afirmativas, medidas estas coerentes com um projeto de escola, de educação, de formação de cidadãos que explicitamente se esbocem nas relações pedagógicas cotidianas. Medidas que, convém, sejam compartilhadas pelos sistemas de ensino, estabelecimentos, processos de formação de professores, comunidade, professores, alunos e seus pais.
Medidas que repudiam, como prevê a Constituição Federal em seu Artigo 3.º, IV, o “preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” e reconhecem que todos são portadores de singularidade irredutível e que a formação escolar tem de estar atenta para o desenvolvimento de suas personalidades (Artigo 208, IV).
(4) QUAL É A DIFERENÇA CONCEITUAL ENTRE RAÇA E ETNIA?
É importante destacar que se entende por raça a construção social forjada nas tensas relações entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como harmoniosas, nada tendo a ver com o conceito biológico de raça cunhado no século XVIII e hoje sobejamente superado. Cabe esclarecer que o termo raça é utilizado com frequência nas relações sociais brasileiras, para informar como determinadas características físicas, como cor de pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira.
O emprego do termo étnico, na expressão étnico-racial, serve para marcar que essas relações tensas devidas a diferenças na cor da pele e traços fisionômicos o são também devido à raiz cultural plantada na ancestralidade africana, que difere em visão de mundo, valores e princípios das de origem indígena, europeia e asiática.
(5) QUAL O PAPEL DA EDUCAÇÃO E DA ESCOLA NAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS?
A educação constitui-se um dos principais ativos e mecanismos de transformação de um povo e é papel da escola, de forma democrática e comprometida com a promoção do ser humano na sua integralidade, estimular a formação de valores, hábitos e comportamentos que respeitem as diferenças e as características próprias de grupos e minorias. Assim, a educação é essencial no processo de formação de qualquer sociedade e abre caminhos para a ampliação da cidadania de um povo.
Combater o racismo, trabalhar pelo fim da desigualdade social e racial, empreender reeducação das relações étnico-raciais não são tarefas exclusivas da escola. As formas de discriminação de qualquer natureza não têm o seu nascedouro na escola, porém o racismo, as desigualdades e discriminações correntes na sociedade perpassam por ali. A escola tem papel preponderante para eliminação das discriminações e para emancipação dos grupos discriminados, ao proporcionar acesso aos conhecimentos científicos, a registros culturais diferenciados, à conquista de racionalidade que rege as relações sociais e raciais, a conhecimentos avançados, indispensáveis para consolidação e concerto das nações como espaços democráticos e igualitários. Para obter êxito, a escola e seus professores não podem improvisar. Têm que desfazer mentalidade racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos.
A escola, enquanto instituição social responsável por assegurar o direito da educação a todo e qualquer cidadão, deverá se posicionar politicamente contra toda e qualquer forma de discriminação. A luta pela superação do racismo e da discriminação racial é, pois, tarefa de todo e qualquer educador, independentemente do seu pertencimento étnico-racial, crença religiosa ou posição política. O racismo, segundo o Artigo 5.º da Constituição Brasileira, é crime inafiançável e isso se aplica a todos os cidadãos e instituições, inclusive, à escola.
Pedagogias de combate ao racismo e a discriminações elaboradas com o objetivo de educação das relações étnico/raciais positivas farão parte de um processo de reconhecimento, por parte do Estado, da sociedade e da escola, da dívida social que têm em relação ao segmento negro da população, possibilitando uma tomada de posição explícita contra o racismo e a discriminação racial e a construção de ações afirmativas nos diferentes níveis de ensino da educação brasileira.